Escuta profunda

por José Valente,    17 Março, 2023
Escuta profunda

Tinha uma crónica praticamente finalizada. Um texto que pretendia, através da comparação, explicar uma dificuldade sistémica. Porém, fui alvo da minha incompetência informática: quando me preparava para fechar a redacção em causa, apercebi-me que a sua mais recente edição não tinha sido gravada no Word. Este erro improvável, aconteceu mais duas vezes. Comecei a acreditar que estava a ser vítima de uma conspiração. No fundo, o meu computador estava a transmitir-me, através deste lapso, que o melhor era eu ficar parado, não escrever uma linha que fosse. 

Desisti. 

É impressionante a facilidade com que perdemos ideias ou certos laivos criativos. Pretextos por vezes iniciados, já cozidos até meio que, de repente, ou deixam de fazer sentido ou por e simplesmente desaparecem na confusão de motivos que ocupam a nossa cabeça.

Por vezes, na composição, eliminamos propostas com a mesma facilidade. Já me aconteceu trabalhar de forma obcecada numa hipótese para depois, que nem um capricho, me desvincular dela sem hesitação. O pior nesta situação é se, um dia, revemos essa opção antiga e descobrimos que esta, afinal, até era competente e que, se calhar, teria valido a pena insistir na mesma.

Mas isto são maleitas relativas a uma criatividade ponderada, planeada, seduzida sobretudo pela beleza do processo e pelas suas epifanias. 

Existem outras práticas musicais que, não sofrendo destas incertezas, promovem desafios diferentes. Propostas artísticas, cuja manutenção teórica e conceptual depende da experiência. Da experiência pessoal e artística de cada executante, como da experiência em si, o próprio momento musical.

É o caso dos músicos que se dedicam à improvisação livre, à composição em tempo real nas suas mais variadas vertentes.

Há mais de 10 anos fiz um concerto marcante com o violoncelista Hank Roberts, no Canadá. Tinha, poucos dias antes, apreendido o significado e a importância do deep listening, ou seja, da escuta profunda, um conceito desenvolvido pela acordeonista, compositora e improvisadora Pauline Oliveros, fundamental para a compreensão da nossa relação activa com o som. Considero que é determinante, para melhorar a categoria da nossa expressão, integrar a escuta profunda na nossa vida musical. Independentemente do estilo ou da área artística em que estamos a crescer. 

Resumindo, eis o que significa a escuta profunda: quando um músico toca, este situa-se inevitavelmente num continuum espaço/tempo. O som que o músico produz é influenciado pelo seu estado de espírito, claro, mas também pelo lugar que o envolve (a arquitectura, a temperatura, a acústica, etc.) e pela circunstância desse mesmo lugar (os inúmeros outros sons que constituem o espaço naquele instante). 

Esta oportunidade de escuta, esta concentração auditiva acutilante, é uma necessidade óbvia para as situações improvisadas. Porque num contexto em que a composição acontece no preciso segundo em que o músico toca, é fundamental ter uma abrangência auditiva livre de preconceitos. Ou seja, o músico em exercício deve superar o seu ego musical, para se focar exclusivamente no todo musical. Para tal, precisa de escutar profundamente tudo o que o rodeia. 

Assisti recentemente a um concerto incrível do trio de Liudas Mockunas, Arnas Mikalkenas e Hakon Berre (clarinete e saxofones, piano e bateria) na última edição do Festival Porta Jazz (aconteceu no início de Fevereiro no Teatro Rivoli, no Porto). Neste concerto sem interrupções, os três improvisadores utilizaram três ou quatro segmentos compostos para desenharem o caminho improvisado. No fundo, três ou quatro portos musicais de partida e de chegada. Tudo o resto foi improvisado. 

Esta proposta não é nova. É um enquadramento frequentemente empregue neste tipo de performances. A aplicação de técnicas extensivas, de vocabulários abstractos, de melodias expressivas e de sonoridades da música contemporânea, também não é novidade. Mas não é esse o critério para a apreciação deste concerto. O entusiasmo provém justamente da qualidade apresentada dentro da iniciativa. A improvisação do trio foi cuidadosa, detalhada. Nenhum som foi gratuito ou superficial. O público testemunhou uma criação em tempo real de música de câmara sofisticada, emocionante e extremamente bem tocada. 

O virtuosismo na improvisação não se avalia na capacidade de um músico executar muitas notas, ou frases reconhecíveis do paradigma. A técnica é apenas uma vantagem para aceder à liberdade, para ter mais escolhas. Cada elemento do trio era virtuoso pela facilidade com que manuseava os instrumentos, como pelo compromisso que tinha com a escuta, com a invenção musical pormenorizada.

Aqui fica um exemplo:

Há muitos outros casos bem-sucedidos dentro desta senda de pesquisa. Talvez venha a abordar alguns nas próximas crónicas.

Porém, prefiro terminar com uma sugestão aparentemente antagónica à do trio mencionado.

Há umas semanas atrás, tive o privilégio de ver e ouvir o Paulo Oliveira a interpretar uma série de peças ibéricas, registadas no seu excelente disco “Iberian Impressions”, publicado no ano passado.

O Paulo é um intérprete inacreditável. 

Apesar de se tratar de música escrita, auditivamente agradável e familiar, as peças pareciam ser da sua autoria, dada a facilidade e generosidade da sua execução.

Quando estudei repertório clássico com o violetista alemão Sebastian Bürger, este incentivou-me a ouvir o meu som a partir de um ponto da sala afastado. Enquanto tocava na minha viola, devia distanciar-me do meu corpo, da bolha auditiva que fecha o espaço entre a viola e a minha cabeça/ouvido. Esta percepção, esta forma de ouvir (à distância) foi, na realidade, a minha introdução à escuta profunda. Só que, nessa altura, não conhecia a teoria de Pauline Oliveros.

Num determinado momento do seu recital, o Paulo notou uma criança irrequieta. Foi uma das poucas vezes em que abriu os olhos enquanto tocava. E imediatamente absorveu o que muitos poderiam considerar uma distracção, para continuar a maravilhar o público com a sua arte. Para alcançar a beleza da qual foi protagonista, o Paulo escutou profundamente. 

Não percam a oportunidade de se deliciarem com este disco:

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