O sumário do professor Úria
A 16 de Março comemoraram-se os 10 anos do disco “O Grande Medo do Pequeno Mundo”, de Samuel Úria. Gostaria, como admirador confesso da obra do cantautor tondelense, de elevar esta comemoração a assunto de interesse nacional. A contribuição dos seus discos, letras e canções para a cultura portuguesa — principalmente por serem contracultura — é demasiado relevante para ser esquecida ou ignorada como se de um mero aniversário se tratasse e que, por convenção, se celebra. Tudo o que aqui escrevo tem uma razão de ser: a minha vida no desporto é indissociável da música, e, por isso, o meu comentário não é o de um especialista musical ou literário. É o de um curioso que vê na música e no desporto — quando interligados — uma maneira elevada de o Homem desvendar coisas da vida. Prestemos então atenção ao ex-professor de Educação Visual e Tecnológica.
Num mundo em que tudo à nossa volta serve para dar adubo ao nosso eu, Samuel Úria, desavergonhado, apela à urgência de nos humilharmos, com o “orgulho inflamado”, diante da imensidão e grandeza da vida, comparada com a posição de formiga em que nos encontramos — curvada, de carga às costas, levemente miserável e insignificante. Em “É Preciso Que Eu Diminua”, somos convidados a nos abreviarmos, a vivermos com a convicção clara da nossa fragilidade. O mesmo acontece em “Império”, em que “não é a estrada que se alarga, sou eu que me apequeno”. É essa a tática maior de Úria: ser professor sem o pretender ser. Nunca correndo o risco do moralismo, ao contrário de tantas canções e mensagens panfletárias, plenas de imperativos e paternalismo disfarçado de humanidade, Úria parte sempre da sua própria vida, de uma experiência verdadeira do “eu”, para afirmar a sua pequenez, e incita, sem qualquer tipo de lições ou reprimendas, a que façamos da mesma maneira: face a face com a experiência, confrontamo-nos e questionamos se não somos também nós estreitos, insuficientemente estreitos.
Aliada à afirmação desmesurada de nós próprios e da nossa identidade, emerge o individualismo, que Úria, ousadamente ao contrário do mundo refém de uma autoafirmação constante, recusa com firmeza: “Quando o deserto não for mais / do que um grão, do que um grão, do que um grão de areia/Não o sacudas com a mão / Tens o mar, tens o mar, tens o mar inteiro”. Em “Deserto”, caminha-se pela areia da verdade hegeliana, feita de totalidade, e “escolhem-se os medos de sermos nós”. Este “nós”, ao referir-se à 1.ª pessoa do plural, contrapõe com a 1.ª do singular. De uma armada movediça entre as fronteiras de um todo que tememos que nos apague, sobressai o armistício misterioso de um “eu” mais definido, palpável e nítido, porque a submissão do coração à verdade não esconde, antes revela, põe em evidência e dá-lhe sentido.
“Quero-me aflito a afirmar quem fui”, suplica Samuel Úria, em “Graça Comum”. A nossa silhueta é de difícil definição. Os limites são vagos por sermos tantas coisas todos os dias — tal qual mosaico de contradições. E se não há divisas claras nem transparências evidentes, porque “a carga de ombro é legal”, a tentativa de percebermos o que há de nós em cada gesto torna-se ineficaz. Assim, perante a incerteza de não sabermos se o dom vem de dentro ou fora, e se é sequer um dom, Úria afirma-se, combatendo novamente a tendência do self-made man, como um homem de trajeto imerecido. “Quero estar pronto a dizer: não sei” e “Quero ter queixo caído a ganhar o céu” são declarações de um jogador que joga com o que recebe, que espera o fruto e se espanta com a extensão outrora desconhecida dos seus passos. “Larga a coroa e ganha a taça” serve, portanto, de provocação para todos nós que emaranhamos o mérito com a honra, e que relacionamos precipitadamente as nossas conquistamos como frutos do nosso sangue, suor e lágrimas, como se nos intervalos dessa demanda tivemos a capacidade de sermos sempre inteligentes, bondosos, merecedores de todo o talento que carregamos. “O que nos cabe, o que calhou, está reservado”, esta rara anunciação de uma Graça imerecida é a certeza do mistério de que não somos dignos. Pedimos porque somos insuficientes. Pedimos porque não temos, como mendigos, porque “não são obras que nos salvam”. Como um dia li em Tolentino Mendonça: “Bastaria abrir a janela ao romper do dia e demorar uns instantes a percorrer como este mundo, mesmo no seu degrado ou nas suas aflições, não deixa de nos rodear sempre de elementos sumptuosos, de miríades de detalhes luminosos que recordam como a graça pesa infinitamente mais no prato da balança. E, ainda quando sentimos o agravo daquilo que nos é tirado, é sempre mais e mais espantoso o que nos é oferecido.”
Nesta jornada do coração, nascem perguntas no fundo do poço, de árdua resposta, que queremos jamais calar. É uma sede insaciável, geralmente habitada por substância espiritual. É mais um caso em que Samuel Úria destrói as convenções, desta vez, materialistas. Há em toda a narrativa do autor uma apertada relação com o sublime, alicerçada num lamento nunca sentimental, contrariamente a tantas canções pop, literatura moderna e aquilo a que normalmente chamamos cultura. Úria afirma deliberada e declaradamente uma pertença a um lugar indefinido e, portanto, não material, um “regresso estreito exterior ao universo”, e a seriedade com que se impõe em cada composição nunca se separa de um espírito inquieto. Nele, não há desagregação nem pedaços espalhados e alojados em lugares impermeáveis — há a pessoa. E a pessoa é gerada com um desejo no coração que se estende muito para lá do corpo. Não se trata de religião nem de beatices, é, sim, uma certeza científica, de quem sabe de que matéria somos feitos e para que somos feitos. Samuel Úria, com o arcaboiço de um homem culto, refuta o mote cartesiano e confirma a indissociabilidade da alma e do corpo, tornando-se desta feita uma pessoa inteira, que faz canções inteiras e que a cada vez que sobe a palco faz escancarar essa inteireza.
Ouvir Samuel Úria é como ter um espelho ao acordar.
Declaro, assim, voltando ao princípio, o meu direito de festejar a existência de Samuel Úria, todos os dias e todos os anos.