Por cada chávena vazia, um coração cheio
O Comendador Rui Nabeiro morreu, com ele, desabou a única ponte de afeto e admiração que alguma vez tive com o meu avô.
Nos almoços de domingo, terminados os pratos e servidos os elogios pelos factos consumidos, ressoava da única cabeceira — em voz grossa, fria e distante com um sotaque das beiras — a pergunta que definia a bandeira desta tribo: quem é que bebe Delta? Para o meu avô nunca havia café lá em casa. Nunca houve. Havia Delta, ponto! E, se não fosse possível arranjar café Delta, então não se bebia, ponto também! Era simples. Tal exigência e estoicismo que recaiu sempre com violência sobre o seu neto, este que o escreve. Na mente do meu avô, sem qualquer ligação ao universo Delta ou à família Nabeiro, só existia uma possibilidade: tingir qualquer toalha — de papel ou tecido, por norma, a melhor da minha avó — com este género de água benta cafeinada: o café da Delta. O meu avô, também com a quarta classe, encontrou um espírito gémeo ou paralelo em Rui Nabeiro. Eu, carente pela sua aprovação — que jamais chegou — aprendi a ver o Comendador com o fascínio e deslumbre que apenas se reserva a heróis e santos. Um prémio de consolação numa relação distante e de permanente conflito. Pior, ganhou contornos de um estranho remédio para atenuar a dor, a de me ter dito no leito da sua morte: “tu não vales nada”. Há dias em que a frase me persegue à procura de resolução e levanta questões quanto ao seu significado. Mas, se a vida nos ensina algo, é que há perguntas que nascem para não serem respondidas. No meu caso e do meu avô, a única pergunta que nos uniu, em almoços e ocasionais tascos, foi sempre a mesma: bebes Delta?
A morte de Rui Nabeiro é como ver a única ponte de afeto e admiração que tinha para as raras boas memórias do meu avô ruir perante os meus olhos. Porque, por entre todos os feitos que o Comendador de Todos os Comendadores conseguiu alcançar, o mais importante para mim foi: colocar-se à nossa mesa na forma de uma chávena de café para curar neto e avô — como um diplomata de carinho e estima, de poucos goles. Em cada toalha manchada de café, por cada chávena vazia, tirei sempre uma memória sorridente e um coração cheio. A doçura do momento, em vez do pacote de açúcar, tomou forma nas breves frases de apreço comum por um homem cuja maior virtude tenha sido: saber sempre como amar e ser amado. Uma ideia expressa na sua visão e linguagem de partilha. Talvez, agora escrito e pensado, esta admiração — minha e do meu querido avô António — tenha raíz no simples facto de nunca termos sabido fazê-lo entre nós como Rui Nabeiro soube fazer com todas as pessoas e barreiras que se apresentaram. Fê-lo com um sorriso ímpar e soube convertê-las em amigos ou aliados.
Isto é o que o Comendador estranhamente fez por mim. Pelos outros, posso apenas deduzir, terá tornado um simples café numa memória individual e feliz; uma possibilidade de reencontro; um símbolo de união com os que nos amam ou da nossa pertença assente na preferência de como deve saber um café. Numa rara forma, construiu um conglomerado empresarial onde assentou o seu império de humanidade e propósito de partilha, cuja riqueza é superior a todas as outras: o amor de quem lá trabalha e a fraternidade genuína dos consumidores. Todas as outras coisas, mesmo que mais mensuráveis e quantificáveis dos seus pares, serão pobres. Todos os outros, os seus pares, invejarão este património. Imensurável, invisível, genuíno e eterno. Não se choram as mortes dos homens ricos como se choram as dos ricos homens.
A ele dedico-lhe, porque sinto que lhe deu corpo, uma das minhas passagens favoritas de John Steinbeck em “As Vinhas Da Ira”: “(…) pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos como um só. E desse primeiro <<nós>> nasce algo muito mais perigoso: <<eu tenho algum pão>> mais <<eu, não tenho nenhum.>> E o resultado desta soma é: <<Nós temos alguma coisa.>>. Então, a coisa toma um rumo, o movimento passa a ter um objetivo(…)”. Num país de fracos heróis e parcos exemplos, no dia da sua morte — poeticamente, dia do Pai — ficámos todos um pouco órfãos sem onde pousar tal admiração.
No fim de tudo isto, só me resta perguntar: bebe um Delta? Obrigado, Comendador Rui Nabeiro.
Crónica de Ricardo Lopes.
Criativo de profissão, licenciado e pós-graduado em Gestão, mas sem saber gerir a vida.