Bill Callahan assinalou a passagem do tempo em Lisboa
Tudo o que circunda a música de Bill Callahan e a sua vida parece estar relacionado com a passagem do tempo. A certa altura do concerto que deu no Teatro Tivoli, em Lisboa, no passado dia 14 de Abril, relembra-nos que já se tinham passado alguns anos desde a sua última visita ao nosso país — mais especificamente nove, desde que passou pelo Cinema São Jorge para apresentar o perfeito Dream River.
Agora, do outro lado da Avenida da Liberdade, exercita o seu humor seco para nos dizer que fica feliz por ver que os plátanos que havia plantado da última vez já estão crescidos. “Plantei outras coisas desta vez, vamos ver como estão daqui a 20 anos”, brinca com o público, que rejubila ao pensar que Callahan pretende prosseguir com a sua prolífica carreira, que se encontra agora num segundo período de lançamentos contínuos (começando com Shepherd in a Sheepskin Vest, de 2019, e passando por um álbum conjunto com Bonnie Prince Billy), depois de uma pausa de cinco anos assinalada por desenvolvimentos familiares que lhe trouxeram um renovado fascínio pelo quotidiano e pelas relações interpessoais.
A sua fonte criativa inesgotável daria azo a muitas canções e muitas horas de concerto, mas o mote do espectáculo foi YTI⅃AƎЯ (escrito desta mesma forma), o seu décimo nono (incluindo os lançamentos sob o nome de Smog) e mais recente álbum de estúdio. Foi com ele que começou, tocando as três primeiras canções de seguida, assim como o havia feito há nove anos com Dream River.
Mesmo para quem não conheça bem as suas canções, elas têm o dom de ser facilmente assimiladas, revelando os seus exímios dotes de compositor. São canções que se revelam aos poucos, seja pelas histórias que nos deixam na ponta da cadeira (“My car broke down / In front of my house / I was turning it over and over / And an older man came runnin’ out / He said “Don’t you do that, son / You’ll only make it worse” inicia a arrepiante “The Mackenzies”) como pelas melodias ora doces, ora desérticas, e pelo ritmo controlado pelo mago e baterista Jim White, dos Dirty Three.
A guitarra de Callahan é a base de tudo, à volta da qual os outros instrumentos parecem principalmente adicionar textura. O saxofone soprado suavemente por Dustin Laurenzi e a bateria, principalmente quando tocada com vassourinhas, emulavam uma brisa, sendo mais um marco plácido da passagem do tempo. Em canções como “Everyway”, a segunda guitarra de Matt Kinsey, plena de efeitos, trazia uma sensibilidade country para as composições, ecoando e abrindo espaço para a incontornável voz do cantor, áspera mas sedutora como uma fumaça grossa. Por vezes, parecia que estávamos a assistir a um concerto do Roadhouse de David Lynch.
“Se gostaram desta, acho que vão adorar esta”, diz antes de se atirar a uma versão desconstruída, mas ainda assim adorável, de “Small Plane”, um dos grandes momentos de Dream River. Sem pressa e sem artifícios, pequenas epifanias desdobram-se nas fáceis frases proferidas por Callahan, que nos leva consigo numa pequena aeronave. Se na vida real tal seria impossível, dentro das suas canções cabemos todos. “I really am a lucky man”, canta, num tom desafectado. Sortudos são também aqueles que se relacionam com a sua música e encontram nela estes pequenos tesouros.
Ocasionalmente, a placidez é entrecortada por momentos de maior desprendimento, como no caso da intensa e ameaçadora “Partition”, que arrancou uma entusiasta ovação do público. A última canção antes do encore, “Planets”, incluiu uma ponte instrumental que apontou ao cosmos com uma gravidade até então não sentida, em que cada músico em palco experimentou diferentes formas de transcendência através da música. Mas mesmo nesses momentos, o caos e ruído parecem ser controlados e aprumados, ajustando-se à realidade de Bill Callahan.
Numa verdadeira estrutura cinemática, o concerto que começou com “First Bird” quase termina com “Too Many Birds”, obviamente celebrada como um dos seus maiores sucessos. De apenas um passamos para tantos, que chegam a vergar os ramos da árvore na qual poisam. Canção a canção, foi-se enchendo o coração da audiência, que aplaudiu fortemente até à última, a gingona “Natural Information”. Ironicamente, para um concerto e canções que lidam tanto com a passagem do tempo, a mais de hora e meia de espectáculo passou a voar. Aguardamos pela próxima semeadura de Bill Callahan. Até lá, deixemos as plantas crescer.
Infelizmente, não nos foi possível obter registos fotográficos do espectáculo.