A inveja não tira férias
Nos dias agrestes, em que me assola a angustiante sensação de estar rodeado de gente que só sabe ganhar no jogo da vida, revisito o “Poema em Linha Reta”, de Álvaro de Campos, no qual se escreve que todos os seus conhecidos têm sido campeões em tudo e ele, “tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil”, verifica não ter par “nisto tudo neste mundo.” Se, por um lado, leio este poema como uma confissão de fraqueza de alguém que, exposto a agruras do dia-a-dia, tais como a enxaqueca que não passa ou o empréstimo bancário por amortizar, se rende à evidência de que, conquiste o que conquistar, tenha o talento que tiver, será sempre incompleto e propenso a maleitas e ansiedades, por outro lado, entendo estes versos como uma satírica proclamação de inveja de um homem que se confronta com a gabarolice de pavões que dia sim, dia sim erguem o troféu da pequenez e abancam no trono caseiro por eles próprios montado para se celebrarem entre familiares e amigos próximos aos quais chamam “fãs”.
No seu ensaio “Of Envy”, escreve Francis Bacon (1561–1626) que, entre as afectações da alma, a inveja é das mais inconvenientes porque nunca cessa. Invidia festos dies non agit. A inveja não tira férias, fustiga o bicho que com ela se consome como uma dor persistente, que oscila entre egocêntricas raivas, proclamações de superioridade e tristezas agudas. Assinala o filósofo inglês que a inveja é ainda pior do que uma doença, pois, em muitos casos, as doenças aparecem e extinguem-se, aumentam ou diminuem de intensidade, mas a inveja é constante, rouba qualquer prazer de viver, deixa a pessoa alerta noites a fio, consumindo-se com negros pensamentos, relembrando interações, diálogos que acirram o ranço interior e põem o coração a bater mais depressa, com desejos de vingança em relação a sabe-se lá o quê que traz o sabor amargo aos lábios.
Há mil maneiras de invejar e ninguém pode jurar que nunca sucumbiu a este indigno sentimento. Bacon enumera alguns tipos de inveja: a inveja entre irmãos e entre colegas de trabalho que exercem a mesma posição e rivalizam para ver quem mais se destaca; a inveja de homens fracos, desprovidos de honorabilidade, que maldizem as virtudes alheias; a inveja saudável entre homens de negócios, que olham para o próspero comerciante do lado com o ensejo de o ultrapassar; a inveja que gente privilegiada e aristocrática sente em relação a membros recém-entrados no seu círculo; a inveja de quem, tendo nascido com deformidades físicas ou tendo passado por infâncias marcadas pela penúria e por tragédias como a orfandade, gostaria de ser igual àqueles que calcorrearam o caminho das oportunidades sem serem obrigados a passar por um processo desigual de autossuperação; ou mesmo a inveja de quem, como o imperador romano Adriano, quer ser o melhor em todas as áreas mas, competindo com todos para ser tudo, acaba por falhar.
Privei, durante tempos, com uma senhora de letras cujas intermináveis invejas convertiam aqueles com ela se cruzavam em potenciais inimigos. A senhora queria ser tudo e, se visse alguém a seu lado brilhar, enfurecia-se, iniciava um violento processo de maledicência que azedava as conversas e o ambiente ao seu redor. Certa vez em que a ira trazida pela inveja de um amigo que havia ganho determinado prémio a deixou duas noites de plantão na sala do apartamento, andando em círculos e arrancando cabelos, escreveu uma carta ao referido amigo na qual muito solenemente decretava o término da amizade: “Enquanto for bem-sucedido, não mais posso falar consigo.” Incrédulo, o amigo ainda a tentou procurar, dizer que não era razão para tanto, mas já tinha o número de telefone bloqueado. Com o tempo, percebeu que o assunto era sério e que mesmo conhecidos e amigos comuns haviam sido contaminados pelo azedume da senhora de letras. Rabiosa, eternamente invejosa, a senhora de letras seguiu o seu caminho, publicou as suas coletâneas de poemas, recebeu o aplauso dos críticos, autoproclamou-se divindade viva, mas nada lhe chegava e, todas as noites, pela hora de deitar, deixava-se assombrar pelos demónios da cobiça. Se a senhora, imperfeita como nós, visse, como viu Bacon, que a inveja é uma doença que apenas estraga quem por ela se contamina, talvez tivesse tido capacidade de olhar ao espelho e gargalhar com o ridículo do mundo, rir da estupidez que é gastar a vida odiando o próximo. O que custa é entender.