Entrevista. Leonor Rocha Oliveira: “Há imenso estigma, estereótipos e ignorância em torno da saúde mental”
Nunca imaginou que o seu curto documentário, Borderline, fosse além da nota da cadeira de documentário, mas através da sua própria experiência pessoal com o transtorno de personalidade borderline, contado na primeira pessoa, Leonor Rocha Oliveira conseguiu o Prémio Sophia Estudante, na vertente Melhor Curta-metragem Documentário, em 2022. Envolveu-se em todo o processo de realização do documentário, mas não deixou de referir que “fazer um filme em que eu tinha de estar a escrever, a filmar, pensar na música, tudo, criar o filme, é quase como se fosse terapêutico, um exorcismo de um pensamento que se tem e que se quer transmitir às pessoas”, confidenciou à Comunidade Cultura e Arte (CCA). Este ano, “Borderline” foi o único filme português na secção de cinema do Festival Mental, que decorreu até dia 27 de Maio, o mote para a entrevista que a realizadora cedeu à CCA.
Estive a reparar nos créditos do filme e reparei que, além da realização, estás também em todos os processos de elaboração do filme. Nesse sentido, fizeste assim por ser um tema que está mais ligado a ti, mais íntimo, ou porque, de alguma forma, faltaram bases para encontrares mais pessoal para te ajudar a desenvolver o filme?
Penso que foi por duas razões principais: primeiro, foi um trabalho pedido numa cadeira de documentário que estava a ter na altura, durante a pandemia. Não se podia circular, era difícil as pessoas juntarem-se, havia o constrangimento da máscara, de ir de um lado para o outro e, então, essa foi uma das razões de ter sido só eu. Depois, porque era um tema que, para mim, era tão pessoal, que quis fazer aquilo sozinho, experimentar fazer qualquer coisa que saísse só de mim. Então, não senti necessidade de ter mais alguém, não senti a necessidade de ter uma equipa.
Porque decidiste, naquela altura, focar o Borderline? Achas que ainda há estigma, na sociedade, quanto à doença ou, então, desconhecimento sobre o que possa ser?
Quis fazer porque nunca tinha feito qualquer coisa, depois de reflectir sobre o assunto. Então, fazer aquilo, ajudou-me a pensar. É a coisa que mais afecta a minha vida, tanto pessoal como profissional. Como estava também tão fechada em casa, isso fazia-me mais pensar sobre mim própria, sobre o assunto e como me afecta, como me começou a afectar desde o início. Durante muito tempo não sabia o que tinha, escrever e filmar ajudou-me, de certa forma, a pensar sobre isso, sobre o distúrbio, sobre o que tenho. Se há um estigma, claro que há um estigma, mas não é só com o Borderline, é com a saúde mental em geral. Há imenso estigma, estereótipos e ignorância em torno da saúde mental.
Pelo que percebi, o teu diagnóstico foi tardio.
Foi aos 21 anos, mas quanto a sintomas que começassem a perturbar a minha vida, isso foi desde os 12, 13. Até aos 21 foi, assim, tudo uma montanha russa.
Sentes que se tivesses um diagnóstico mais atempado, ou uma melhor atenção, as coisas poderiam ser diferentes?
Tinham sim, completamente. Aliás, eu já tenho, não é outra visão, mas uma percepção do próprio distúrbio um bocadinho mais madura do que tinha, naquele ano, e que foi a primeira vez que reflecti um bocado sobre as coisas. Sei que o filme está super ingénuo e está frágil, mas foi o que eu senti, assim, logo de primeira, o primeiro choque, em relação a saber o que é que tinha.
Realizares este filme foi, também, uma forma de te ajudar a compreender melhor!
Foi, completamente. Eu, pelo menos, adoro escrever porque me ajuda a organizar as ideias. E fazer um filme em que eu tinha de estar a escrever, a filmar, pensar na música, tudo, criar o filme, é quase como se fosse terapêutico, um exorcismo de um pensamento que se tem e que se quer transmitir às pessoas, e poderes falar do que tu queres.
A arte acaba por te ajudar nesse sentido.
Ajuda-me imenso.
Engraçado, não focaste só o cinema mas a escrita, também, todo um conjunto de variantes artísticas. Mas quanto ao teu diagnóstico, conseguiste ou consegues entender as razões desse diagnóstico tardio?
Antes do diagnóstico, fartei-me de ir a médicos, a psiquiatras e cada um tinha a sua teoria: “Ah, tu tens depressão; tu tens ansiedade; tu tens oscilações de humor”. Eram coisas soltas e eu sentia que havia qualquer coisa mais, do género, “mas isto, tudo junto, não tem um nome?” Senti sempre isso e, depois, havia certas coisas mais específicas, mais difíceis de explicar, que como não sabia o que era, eu pensava, “será que sou eu que sinto isto?” Ia à internet, escrevia o que sentia, e começava a ver que havia outras pessoas que diziam a mesma coisa, depois comecei a ver e ligava sempre ao mesmo tipo, e comecei a ter umas noções sobre isto, mas como é óbvio não me podia autodiagnosticar. Comecei a desconfiar, no entanto, que havia algo mais, mas também é difícil porque não percebia bem o que aquilo era, e estar a pesquisar essas coisas no online é sempre complicado.
Mas o filme centra-se apenas na tua experiência pessoal, ou houve uma preocupação específica num ou outro aspecto mais científico ou mais lúdico?
Acho que a preocupação que tive foi, mais, o não me dar tanto no filme. Estava com receio de estar a falar demasiado, de forma pessoal, de mim: estar a abrir-me demais para os outros. Depois, acabei por perceber que isso era uma coisa boa e que eu queria. Mas claro que só posso falar da minha experiência, até porque não conheço ninguém que também tenha este problema e só posso falar por mim, como me sinto com isso e como é que eu lido.
Mas sentes que esse lado mais pessoal, ou intimista, pode permitir que o filme ressoe ou ecoe de forma mais fácil em outras pessoas que passem pelo mesmo?
Nunca pensei que isto fosse sair do computador e de mostrar ao meu professor, nunca. Fiz e pensei, eu vou vê-lo, o meu professor vai ver, vai-me dar uma nota e acabou. Foi mais a coragem, destas coisas, de saúde mental, tão pessoal e que as pessoas também possam sentir. E, como disseste, é como se ninguém quisesse falar sobre isto, desta forma. É constrangedor, são assuntos delicados e que as pessoas não querem dar a conhecer. Depois, outras pessoas que vinham falar comigo, não que tivessem borderline, mas acabavam por dizer, de alguma forma, que inspirou um bocado no facto de não se ter medo de falar de saúde mental, nem que seja do ponto de vista pessoal. Como é pessoal, acaba sempre por haver alguém que acaba por sentir o mesmo, nem que seja na China, e isso é bom, desde que passe, desde que faça alguém sentir que não está sozinho.
O documentário acabou por uma boa projecção, recebeu o Prémio Sophia na vertente de estudantes. Em relação a jovens que estejam a começar na realização, o que é que tu sentes que falta? É difícil?
É difícil e eu, cada vez mais, não percebo. O mundo do cinema e audiovisual português está fechado numa bolha e precisa, urgentemente, de ser remodelado.
Portanto, para um estudante, ainda pior.
Sim. É muito fácil de dizer, mas acho que é isto: façam o que querem dizer, transmitir, e não sejam tão influenciados pelo que as pessoas dizem que devem fazer. Do género: “isto fica melhor assim, ou ninguém vai ter interesse nesse assunto, ou isso não resulta.” Acabamos por fazer uma coisa na qual não acreditamos e, assim, não presta, não nos sentimos satisfeitos. Não acho que é fácil.
E o sobre o facto do filme passar no Festival Mental, aliás, é o único filme português, o que tens a dizer?
Por ser ligado à saúde mental, gosto ainda mais porque as pessoas que vão ao Festival Mental já sabem que temas vão ser abordados, mais ou menos, lá. O facto de estarem lá psicólogos, psiquiatras e pessoas da área é bom, porque saber que essas pessoas podem ver o que eu fiz interessa-me bastante. Parece que me sinto mais em casa, parece que é mais um tema que, ok, este tema resulta bastante bem aqui. E depois, por ser o único português, ainda continuo admirada.