A noite em que embarcámos com os AIR no ‘Moon Safari’

por Tiago Mendes,    24 Janeiro, 2018
A noite em que embarcámos com os AIR no ‘Moon Safari’

É característico da humanidade descobrir ou inventar sentidos no vazio. A lua, cenário inóspito, é exemplo de uma tela onde a humanidade projectou as suas alucinantes expectativas até, por fim, lá chegar. O pequeno passo do Homem, em plena década de 60, foi clímax de um momento há muito antecipado e imaginado. Mas, ao mesmo tempo, foi sinal de desilusão. O “E agora?” que se segue. Será assim tão interessante este solo cinzento, esta ausência de vento, esta monotonia repleta de mistérios pouco vistosos? Os segundos iniciais de Moon Safari lembram-nos que, onde houver humanidade, há projecção de sentido – e o sentido dança-se.

Em 1995, Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel formavam os AIR, dupla electrónica francesa que nasce praticamente ao mesmo tempo que os seus conterrâneos Daft Punk. Não adivinhavam que viriam a criar um clássico da electrónica downtempo e da música pop ambiente – embora Godin tenha revelado que, no dia em que gravaram “Sexy Boy”, ao sair dos estúdios, lhe tenha passado pela ideia que “as suas vidas iam mudar” (em entrevista ao The Guardian). Corria o ano de 1998, tinham lançado até então apenas uma compilação de alguns singles isolados – o EP Premiers Symptômes – um ano antes.

Moon Safari seria o primeiro álbum de estúdio. Nascia para o mundo a 16 de Janeiro de 1998, em simultâneo em França, Estados Unidos e Reino Unido. Teve uma recepção muito mais eufórica nestes dois últimos, quer em termos de venda, quer de recepção crítica. Hoje, Moon Safari figura entre os álbuns que mais marcaram o seu género, num clube restrito de que fazem parte (à sua maneira, com as nuances próprias) bandas como os Portishead ou os Massive Attack.

O álbum, alquimia incomum entre o hipnótico e o psicadélico, está cheio de recantos inexplorados, mesmo ao fim de múltiplas audições. Com grande ênfase na construção instrumental, mesmo nas faixas cantadas, as canções convidam-nos a um safari por terras de uma electrónica reconfortante.

O tema inicial, “La Femme d’Argent”, abre com balanço os 44 minutos que se seguem. Tem ritmo de incursão, passada larga e/ou rodas em baixa rotação. Temos tempo, e vontade, de fazer esta viagem. Uma das coisas que mais impressiona o ouvinte – logo desde o início – é a riqueza de texturas, na simplicidade. Da sonoridade jazzy da faixa inicial, passamos para a mais acutilante “Sexy Boy”, que contrasta com a primeira em tom e atitude, ainda assim conservando a mesma assinatura estelar e espacial.

Se o ouvinte ainda não tiver sido conquistado, a terceira faixa encarregar-se-á de o fazer. “All I Need” conta com a presença da voz calmante de Beth Hirsch – artista que nunca chegou verdadeiramente a ganhar asas, na curta discografia que iniciou, sem grande recepção, no virar do século. É a primeira e a mais marcante das suas duas participações no safari lunar – e de toda a sua carreira (arriscamo-nos dizer). O órgão que se segue aos “aaa-uuu-aaa” é pontilhado, estalactite a pingar numa estranha lua com água – já a ouvíramos correr em “La Femme d’Argent”. A canção vai ganhando corpo e graves, até voltar a surgir depois de se revolver, na sua identidade original, de vértice agudo e arredondado. Tudo isto ocorre sob o acompanhamento de uma guitarra, dedilhada, numa sonoridade improvável e envolvente, que sabe a abraço. Estamos numa lua habitada, que sabe a casa: tudo o que precisamos é de um pouco de tempo, para podermos celebrar, como as palavras do verso nos indicam, qual receita que serena a mente à hora de deitar. Sim, porque o poder soporífero de Moon Safari – um sono com muitos sonhos, expansivos – não deve ser negligenciado. É álbum nocturno por excelência – “Kelly Watch the Stars” confirma-o, mas não precisávamos dessa prova, já nos era evidente.

Antes de avançarmos, como não destacar o baixo? É rara a faixa em que não assume o controlo do groove, lento e compassado, imprimindo boa parte da identidade do disco. De maneira improvável, este acaba por ser um daqueles álbuns repletos de bons exemplos para mostrarmos àquele amigo que ainda não valoriza suficientemente o papel do baixo no seio de uma banda.

O vocoder das vozes em “Kelly Watch The Stars” é mais um lembrete de que Daft Punk não estão completamente fora de vista. É particularmente interessante discutirmos isso porque sabemos que os projectos, tendo nascido praticamente ao mesmo tempo e na mesma capital europeia, se tocam e se inspiram mutuamente. Aconteceu: duas das mais importantes bandas electrónicas francesas nascerem de um mesmo berço, bebendo de influências completamente distantes e seguindo caminhos marcadamente distintos. É impressionante observá-lo. Mais adiante, a voz processada de “Remember”, em diálogo com as cordas, é particularmente poderosa – reminiscente do imaginário que os Daft Punk (vamos fechar aqui este capítulo, mas não podermos deixar o notar) usaram no seu mais recente álbum, em que podemos ouvir “Touch / I remember touch”.

Os sintetizadores são ponto forte do álbum, formando a base de toda a sonoridade, e revelam a sua vertente estética. Sim, aqui e ali fazem-no de forma datada, como é expectável num álbum que celebra agora o seu vigésimo aniversário; mas, na maior parte das vezes, o seu uso continua a ter efectividade emocional.

O leque de sintetizadores não bastou aos AIR, pois nem só de teclados se faz uma paisagem lunar. Já próximo do fim, o álbum presenteia-nos com um dos seus momentos mais luminosos, voltando a colocar a guitarra acústica em evidência – o instrumento aparentemente mais intruso à mistura de Moon Safari, mas que por diversas vezes vem insuflá-lo de alma. E se de alma falamos, não podem faltar estes sons: os sopros quentes dos metais, a orquestra espacial, os coros, e até qualquer coisa semelhante a concertina. É “Ce Matin-Là”, um dos momentos mais inspiradores de todo o álbum, porque transborda humanidade – a tal que desenha sentidos e traz cores ao solo lunar, onde o sol nasce e se põe de quinze em quinze dias.

Quando o safari chega ao fim – e após o mantra de “New Star in the Sky” – escolhemos a próxima galáxia a visitar. “Le Voyage de Pénélope” parece nascer de experiências com os efeitos especiais do sintetizador, como motor que tenta arrancar para novos destinos – e custa a pegar, mas é da maneira que passamos mais uns minutos com ela, antes do disparo à velocidade da luz. É o expansivo final da obra-prima dos AIR, que ao longo dos anos seguintes viriam a lançar mais alguns bons e relevantes trabalhos (entre as quais a banda sonora de The Virgin Suicides, de Sofia Coppola), após o eco e o impacto que Moon Safari lhes alcançou, em França e além fronteiras. Diz-se que até a lua terá passado a habitar-se com um pouco mais de prazer.

https://www.youtube.com/watch?v=aqrYGExx8Ag

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