João César Monteiro: extravagante na vida, rebelde na obra
Se fosse vivo faria hoje 79 anos. João César Monteiro foi um dos que deu força ao Novo Cinema Português, marcou uma geração, e um dos maiores realizadores da mesma. O cineasta que Portugal nunca irá esquecer, filmou Lisboa com tudo o que a cidade tem para oferecer e os que nela habitam de forma genuína. Nasceu na Figueira da Foz, mas foi em Lisboa que cresceu e não se imaginava a viver noutra cidade, a mesma que observava através dos seus escalões sociais inferiores e de algumas tascas antigas. Hoje fazemos uma homenagem à vida e obra de João César Monteiro, o homem do sobretudo esquecido e da língua afiada, da qual resultaram algumas das peripécias mais marcantes do cinema português.
Dizia-se um homem solitário, auto-excluído da sociedade, a qual, dizia ter cada vez mais dúvidas. Monteiro era uma pessoa rebelde desde a sua infância, chegou mesmo a confessá-lo em entrevista ao Diário de Notícias (1997): “Fazia, em suma as piores patifarias, coisas mesmo atrozes. Uma vez pus uma cana na porta de saída do autocarro para as peixeiras caírem. Outra coisa que também me agradava muito era apalpar mamas, sobretudo a criadas. E por isso fui punido com um bofetão. Tinha sete, oito, nove anos”. A rebeldia que afirmava carregar desde as suas origens, nomeadamente, o seu típico erotismo: “Seguramente era a sexualidade difusa da idade. Outra coisa que eu gostava muito de fazer era levantar saias às meninas. Fui suspenso do liceu quinze dias.” O reflexo deste ser sexual e erótico é um factor simbólico nos seus filmes, muito característico nas personagens que construía.
O cinema de João César Monteiro é normalmente rotulado como filme-poema, um género que a crítica atribui pela forma como o cineasta inclui na sua filmografia expressões líricas de poetas clássicos portugueses. Ao nível do argumento e diálogo, João César Monteiro, implementava também a utilização de expressões e mitologias populares. Os seus filmes caracterizam-se por aspectos de cariz social muito fortes, nomeadamente, na forma como retrata os diferentes escalões sociais, oferecendo de algum modo profundidade às suas personagens. A utilização de recursos satíricos e irónicos é uma presença muito particular e assídua no cinema de Monteiro, principalmente, na referência a cargos elitistas, políticos ou autoritários. A subtileza na forma como parodiava polícias ou juízes é uma presença forte da sua filmografia, de recordar, a cena do filme «As Bodas de Deus», em que João de Deus insulta o juiz em plena audiência no tribunal. É importante realçar o destaque das personagens femininas no cinema de João César Monteiro, o cineasta elevava a mulher a um patamar quase inatingível e divino, algo que está retratado em «As Recordações da Casa Amarela», quando João de Deus sente uma real atracção pela menina Julieta, sendo esta o seu maior desejo, embora a mesma se trate de um fruto proibido.
Os filmes de João César Monteiro são assim uma fusão de inspirações artísticas, cinematográficas e literárias, sem deixar de lado o seu cunho «Monteirista». As associações e homenagens a filmes que marcaram a História do Cinema estão muito presentes na sua filmografia (como se pode ver pelas fotografias/montagens presentes ao logo deste artigo)
A sequência do talho em «A Comédia de Deus» é uma homenagem ao filme protagonizado por Vasco Santana na década de 40, «O Pátio das Cantigas». A utilização do “Ó Evaristo tens cá disto?!”, uma expressão que se tornou um símbolo da linguagem popular até aos dias de hoje. A simbologia tipicamente lisboeta, da cultura popular que nela habita e as influências ao nível cinematográfico elevam, de algum modo, o cinema de João César Monteiro a uma fusão de várias influências, desde a literária até às mitologias populares.
O realizador tinha por hábito buscar influência em “certas camadas populares, certas tascas antigas…” – referiu na mesma entrevista a Anabela Mota Ribeiro para o DN – as camadas populares a que se refere são as que habitam nos bairros de Lisboa, fielmente retratadas nos seus filmes. As tascas antigas têm vindo a perder-se por conta da elevada onda de turismo que atinge a cidade, descaracterizando-a em alguns locais outrora palcos da cinematografia de Monteiro.
A anarquia que João César Monteiro acreditava ser a solução para uma vida social ordenada, serviu de algum modo para inspirar as suas sátiras às elites políticas e autoritárias, como exemplificamos acima, a cena do tribunal, é retirada de um momento anarquista da vida do realizador na Assembleia da República, quando este se viu ser agredido por dois polícias: “Estou a falar a sério. Chamei-lhes logo Filhos da Puta, uma expressão que eu utilizo muito. Gosto imenso da expressão Filho da Puta. Tenho uma engatilhada há anos. O meu sonho é ser julgado em tribunal e quando o juiz disser “levante-se o réu” a minha resposta é “levante-se você, seu filho da puta”. Agora, como para chegar até ao tribunal é uma maçada, estou a pensar em metê-la num filme.”
A arte de João César Monteiro soma três elementos essenciais que o caracterizam como um dos realizadores inesquecíveis no panorama português. A utilização da língua portuguesa no seu todo, a gíria popular, o calão, mas também os finos recortes literários de poetas clássicos. A sátira de cariz político e social, representando de alguma forma a sociedade portuguesa pós 25 de Abril. E para finalizar, concebe poesia com cinema ao dirigir-se para o ser feminino de forma invulgar e peculiar.
César Monteiro era um pouco isto, um ser crítico da sociedade, do ser humano, da arte, do cinema e da vida. O realizador que não necessita de ser aclamado pelos grandes órgãos de comunicação social para ser lembrado. Um senhor que foi polémico, pelo que dizia, pelo que fazia e pela forma como muitas vezes se dirigia aos outros, no entanto a sua obra é intemporal, que faz dele, o realizador mais carismático do cinema português. Por tudo isto, é caso para dizer: Obrigado, João César Monteiro.