‘The Shape of Water’, o rei vai nu
No conto do autor dinamarquês Hans Christian Andersen dois impostores fazem-se passar por alfaiates diante de um rei muito vaidoso. Dizem conseguir fazer trajes lindíssimos dotados de uma característica especial: só as pessoas inteligentes e capacitadas para o cargo que ocupam o conseguem ver. Quando os burlões lhe apresentam o vestido diante dos olhos, o rei, embora não visse nada, elogiou o vestido pois o contrário seria admitir a sua pouca inteligência e incapacidade para governar. Como ninguém na sua corte ousou passar por estúpido (afinal de contas não viam o vestido), o rei acabou por desfilar no cortejo real, diante da população. Apenas uma criança, preenchida pela sinceridade, ousadia e inocência próprias da idade, gritou “o rei vai nu!”.
Talvez isto ajude a compreender um pouco a aclamação de Hollywood ao novo filme de Guillermo del Toro que conta com 13 (!) Nomeações aos Óscares, incluindo a de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento Original. Vivendo de uma aura facilmente comparável à de Le fabuleux destin d’Amélie Poulain – que já de si é insalubre -, muito por culpa da banda sonora de Alexandre Desplat, em tudo semelhante à criada por Yann Tiersen para o filme de Jean-Pierre Jeunet, The Shape of Water transporta-nos temporalmente até aos anos 60, altura de Guerra Fria em que os tumultos sociais e o racismo faziam manchetes todos os dias.
Não é por isso estranho, muito menos aleatório, que todos os protagonistas do filme incidam não só sobre estas temáticas, como haja também um aproveitamento óbvio da altura histórica retratada para colocar o dedo na ferida sobre a actualidade.
Sally Hawkins é Elisa Esposito (nome de origem latina), uma jovem muda que mora ao lado do seu vizinho homossexual de meia idade Giles (Richard Jenkins), pintor e desenhador (portanto, ligado às artes) no desemprego com quem vê clássicos de Hollywood (protagonizados por Alice Faye, Shirley Temple ou Betty Grable, etc). Elisa é empregada de limpeza num edifício governamental e a sua grande parceira no local de trabalho é Zelda Fuller (interpretada por Octavia Spencer), uma afro-americana tagarela que desabafa interminavelmente sobre o desdém do seu marido para com ela. Ao edifício acaba de chegar Richard Strickland (Michael Shannon), um homem ligado ao exército encarregado da segurança do mais recente activo das instalações, uma criatura aquática com forma humana e poderes desconhecidos. Mas Strickland não é só isso. É também um homem que se faz valer da sua posição hierárquica para assediar Elisa – já ouvimos falar de qualquer coisa semelhante nos últimos tempos…-, sendo também extremamente agressivo e um racista de pior espécie (e que não lava as mãos depois de fazer as necessidades). É como se del Toro e Vanessa Taylor se lembrassem de todo o tipo de temáticas sociais possíveis e tivessem decidido fazer um filme activista em prol das causas. O problema é que não se percebe se era isso que queriam, com uma história de amor como pano de fundo, ou vice-versa e todas as questões mencionadas estão ligadas por diálogos simplistas e cenas feitas a correr.
Questionemo-nos por um segundo sobre a rápida ligação entre a criatura e Elisa e sobre o tempo em que uma empregada de limpeza passa perto do activo mais valioso das instalações sem qualquer vigilância. Questionemo-nos também sobre a desnecessidade da cena em que o casal de raça negra é proibido de se sentar ao balcão pelo jovem empregado da casa de tartes logo no seguimento do momento em que Giles se está a declarar a ele. Questionemo-nos também sobre a necessidade da cena de sexo entre Strickland e a sua mulher, onde a manda fazer pouco barulho para depois dizer a Elisa que “gosta delas silenciosas”. E a compra do Cadillac, foi para quê? Também podemos perguntar como é que uma casa de banho, com simplesmente uma toalha a tapar a porta, fica completamente submersa para fins recreativos. Por fim, se quisermos, questionemo-nos também sobre a forma como o maior activo das instalações secretas governamentais é levado das mesmas.
É quase ofensiva a forma descuidada com que várias opções foram tomadas e que temáticas tão importantes foram abordadas ao longo do filme. Seja em cenas sem cabimento ou feitas à velocidade da luz para nos dar um produto fast food, há muito mau gosto na forma como o filme foi tratado e sobretudo como nos foi vendido, como se defendesse realmente aquilo a que chama de outcasts. Só porque as temáticas são abordadas isso não lhes dá o direito de ficarem imunes à crítica. Precisamente pelo contrário. É o facto de decidirem abordar determinados temas que os deve obrigar a um cuidado redobrado na forma como o fazem.
Ainda assim, obviamente que nem tudo é negativo em The Shape of Water. Comecemos pela própria criatura, idealizada através da de Creature From The Black Lagoon cuja cara se tornou também conhecida mais recentemente entre o público português pela personagem Renato, do Programa do Aleixo. Com a tecnologia disponível, del Toro e a sua equipa trouxeram-nos uma personagem realista, e cuja existência era verosímil, assim como outros pormenores de efeitos especiais como um buraco na cara sob o qual alguém é arrastado ou o pus em dedos quase gangrenados. Além disto, há ainda dois aspectos a referir. Primeiro as interpretações de Sally Hawkins e Richard Jenkins. Octavia e Michael Shannon fazem apenas o mesmo papel de sempre. Sally, interpretando uma dificílima personagem muda, faz-nos crer em todas as emoções e momentos pelos quais passa. Segundo, é também louvável a experiência quase onírica criada em grande parte por Dan Laustsen e Paul D. Austerberry. Seja pelo jogo de cores, o verde, o azul e o amarelo como indicador de algo antigo, como o pensamento, e muito reconhecível também na estética de Mad Men, além da água, seja na banheira ou a bater nas janelas, faz-nos quase crer estarmos num sonho.
Há que reconhecer o mérito em tornar esta história bizarra em algo credível mas não podem ser ignorados os seus pontos fracos, e apesar de ser uma experiência sensorial fantástica, bem ao estilo do seu realizador, The Shape of Water tem um guião preguiçoso, repleto de incoerências e facilitismos, fazendo com que esteja longe de ser a obra prima que Hollywood tem querido vender e que seria de esperar pelo número de nomeações aos Óscares e prémios já obtidos. Hollywood é cada vez mais folclore, política e sobretudo a obrigatoriedade imposta a si mesma de uma mensagem social forçadíssima e que não deveria nunca ser aspecto qualitativo na análise comparativa dos filmes que deve premiar. O ano passado esta quota do “politicamente correcto” foi preenchida por Hidden Figures.
É pena que filmes como The Shape of Water, com tanto potencial e com um dos realizadores mais criativos dos nossos tempos, que nos trouxe o já imortal Pan’s Labyrinth, hipotequem a sua originalidade em prol de um sem número de lugares comuns, vulgos clichés baratos, resultando numa mensagem no mínimo entorpecida. Há, no entanto, boa parte de nós que continua a exigir mais e melhor, ainda que nos queiram vender algo banal como obra de arte. A Bela e o Monstro dos nossos tempos acabou por se tornar num Free Willy.