Emoções não pagam contas
“Queres ficar cá?” é uma das principais perguntas que surge nas conversas da minha geração. A questão causa-me estranheza, essencialmente porque creio que está mal formulada. Portugal tem uma gastronomia invejável, pessoas incríveis, um clima estupendo e uma cultura diversa — quem não gostaria de viver cá? No meu entender, o ónus não se prende com a vontade, mas sim com a possibilidade: “podem os jovens viver cá?” Tendo em conta que uma parte significativa trabalha dois empregos para conseguir pagar contas, que saem mais tarde de casa dos pais do que os restantes jovens europeus e que o trabalho não lhes garante escapatória à pobreza, não, não podem.
Não creio ser difícil inferir que a principal razão para tal são os baixíssimos salários praticados pelo tecido laboral português. Esta situação é transversal, não fosse metade do país ganhar menos de 1050€ de salário bruto, mas particularmente agravada na geração mais qualificada de sempre, que, após anos de formação, vê-se confrontada com ofertas de emprego que não só não cumprem as legítimas expectativas, como não permitem a subsistência no país. Anos de esforço, dedicação e estudo são retribuídos com salários de mil e poucos euros. Aliás, a cunhagem que melhor se encaixa não é a de “geração mais qualificada de sempre”: é a de mil eurista. Todos estamos em torno deste valor — os menos qualificados um pouco menos, os mais qualificados um pouco mais.
Salários deste nível não permitem viver em Portugal com dignidade. Se somarmos o custo da habitação, das utilidades básicas, dos transportes e dos bens essenciais rapidamente ficamos “a zeros”. Se a esta equação adicionarmos a creche, o vestuário ou o material escolar, num instante ficamos “no vermelho”. Isto é incomportável. Não espanta por isso que os jovens emigrem para países que lhes fornecem melhores condições de vida, isto é, onde recebem um salário digno — onde são três ou quatro mil euristas.
Seria de esperar, então, que, num país onde os salários baixos são a norma, uma remuneração “acrescida” fosse o principal incentivo para captar trabalhadores. Infelizmente, não é o que acontece. Nas ofertas laborais que inundam as redes de procura de trabalho, antes de sequer apresentar o salário monetário, muitos congratulam-se por oferecer “salário emocional” como benefício. É impossível não corar de vergonha por anunciar que se disponibiliza, em pleno século XXI, um bom ambiente de trabalho, respeito pelo outrem e um work-life balance decente em detrimento de um salário apropriado. A menos que alguém já tenha descoberto como pagar a conta da electricidade com emoções, é preciso repetir ad nauseum que não existe “salário emocional”.
Quando questionados sobre o parco salário proposto — o que paga contas —, os responsáveis pelo tecido industrial dizem-nos que este não pode ser superior por várias razões. De facto, a determinação salarial é extremamente complexa e multi-factorial. Contudo, apesar de algumas razões legítimas e que são verdadeiros entraves ao aumento estrutural dos salários, as duas mais veiculadas (e que correspondem à quase totalidade dos pedidos) são verdadeiros espantalhos que não têm adesão à realidade.
Em primeiro lugar, dizem que os salários não podem subir enquanto a produtividade do país não aumentar. Efectivamente, a produtividade do nosso tecido económico é baixa por ser, essencialmente, ancorada em produções de diminuto valor acrescentado, como o turismo. Contudo, a produtividade tem aumentado todos os anos sem que os salários a tenham acompanhado, resultando num fosso cada vez maior entre salários e lucros. Isto advém, também, da atomização dos indivíduos, demonstrado pela baixa sindicalização e redução de contratos colectivos, que resulta na diminuição do poder negocial dos trabalhadores. Parece irreal, mas os trabalhadores tornaram-se um agente quase passivo na determinação do salário.
Em segundo lugar, afirmam que os impostos impedem qualquer possível subida dos salários. Ainda que faça sentido defender alguma redução da onerosidade fiscal salarial para as classes médias, este encadeamento lógico não faz sentido para os salários mais baixos — praticamente não pagam IRS. Além disso, os impostos empresariais efectivos encontram-se apenas ligeiramente acima da média europeia, o que não se coaduna com a alegada “asfixia fiscal”. Mais: não é líquido que a descida dos impostos se traduza, per se, em salários mais elevados, justamente porque existe uma mão bem visível que, com alguma probabilidade, comerá a fatia de leão da descida.
Note-se como estas “justificações” colocam, grosso modo, a culpa dos baixos salários na economia, nos trabalhadores, no Estado, nos impostos, na geografia ou, indo ao limite, no clima. Ninguém ignora que todas estas considerações são importantes para a definição salarial. Ainda assim, afirmar que a culpa dos baixos salários está em todo o lado excepto em quem os paga parece-me próximo da alucinação. Já tínhamos visto que os trabalhadores estavam praticamente excluídos da negociação salarial. Se acreditarmos nestas desculpas, temos também de aceitar que os empresários estão também ausentes da determinação. Estará o posicionamento salarial entregue a ninguém?
A desfaçatez que abraça a nossa classe empresarial é imensa (ou será o contrário?), mas não fica apenas por estes espantalhos. Perante ofertas laborais com salários reais baixos, mas salários emocionais altíssimos, queixam-se de que já não existe quem queira trabalhar. Sucede que não há falta de trabalhadores — há falta de salário. Daquele que paga contas no fim do mês. Mais salário emocional? Não, menos vergonha.