Escrevo porque aspiro a sujar as mãos de terra
«O que eu queria era pôr a vida toda entre as capas de um livro», diz António Lobo Antunes, do alto da sapiência de quem anda neste ofício de virar páginas há tempo suficiente para saber que um livro não serve para contar histórias. Eu escrevo há tempo suficiente para saber que nunca escrevo aquilo que quero mas apenas o que consigo ditar, vindo de um lugar que desconheço.
Não sou mística, porém sou obrigada a reconhecer a sublimidade da escrita quando o diálogo corre bem entre a cabeça e os dedos; quando o encontro corre mal, tem-se apenas um charco de palavras sem vida a que chamamos texto. Sentar-me ao computador é sempre um acto de humildade e ignorância. Nunca sei o que escrever: habitualmente não tenho uma única ideia, uma linha. Apenas conheço a vontade deste rio que começa dentro de mim e que irá desaguar não sei onde, nem sei se chegará a algum destino que seja vagamente parecido com o mar. Desconheço a origem da escrita e o seu emprego. Faz parte do mistério da sua cava e profícua inutilidade.
Escrevo porque a vida me fez inapta em tantas coisas, que é aqui nas páginas escritas que encontro alguma capacidade de ligação com a natureza humana. De me sentir humana.
Percebi cedo que a vida não tinha sentido nenhum e que escrever seria a única coisa que daria alguma orientação à minha existência. Em pequena escrevi diários, poemas, ficções breves e até peças de teatro, mas do que eu gostava mesmo era do charme físico que eu julgava que ia ganhar com o ofício de escritora.
Descobri, através das horas gastas ao computador, que pouco seria o encanto que me iam trazer uma corcunda ou um problema nos tendões das mãos. Que escrever não era como praticar ioga ou ir ao ginásio, que tudo aquilo que uma escritora ou um escritor nunca terão, se trabalharem a sério dando o corpo ao manifesto da escrita, será uma boa forma física ou psíquica. Esquecemo-nos das horas ao computador. Esquecemo-nos de comer e, depois de jejuar por esquecimento, comemos em demasia. Esquecemo-nos dos nossos pais, dos maridos e das mulheres, dos amigos e até dos filhos, e por isso somos considerados desnaturados por muitos dos que nos amam.
Quando se escreve não existe a ideia de duração, porque estar dentro de um texto é viver dentro do tempo da criação. E somos sempre outras pessoas dentro de um texto, mesmo quando se usa material autobiográfico. As memórias são sujeitas obrigatoriamente a vários escoamentos: mastigadas pelo tempo, escolhidas ou esmagadas pelos dedos. Escrever é querer «pôr a vida toda entre as capas de um livro», disse o Lobo Antunes. Como é estranha esta enorme ambição que vem certamente de um lugar recôndito do ser.
Talvez queiramos apenas ver este mundo noutro mundo, assistir de perto àquilo que desconhecemos. É certamente porque não nos interessa a vida quotidiana de superfície. Deslizar sobre a face das coisas não nos chega. Falo por mim. Eu não quero contar histórias. Prefiro trabalhar na escavação, no fundo sou uma mineira. Escrevo porque aspiro a sujar as mãos de terra.