Vivo daquilo que os outros não sabem sobre mim
Ninguém sabe do segredo que me rouba tantas vezes o sono e que torna maçãs tangíveis num irreversível puré de pesadelos. É preciso abanar as árvores e sacudir a fruta que está em excesso nos galhos, deixando apenas o essencial. Durante muito tempo esforcei-me por agitar os ramos dessa árvore imaginária que me ensombrava os dias limpos. Demorei a compreender que a árvore era eu e que por mais que agitasse violentamente os meus braços de lenha, os frutos continuariam a crescer como pesos dependurados nas minhas pernadas.
Percebi que só o tempo e a mudança de estação poderiam aligeirar o peso de certas cargas, e que alguns fardos depois de caídos por terra, ainda assim, continuariam a deixar vestígios como fendas de resina.
Vivo com um segredo que me acorda de noite e que se infiltra debaixo das raízes, uma serpente subterrânea que cicia representações inolvidáveis da mesma memória terrível, que só morrerá quando este corpo de árvore se incendiar ou for abatido a toque de machado. O meu segredo tem a força de uma praga na floresta e faz-me adoecer todos os dias entre o pequeno-almoço e o lavar de dentes atávico em frente ao espelho.
Sou o escolhido pelos fungos, pelos vírus e bactérias; sou o depositário perfeito de todos os agentes bióticos; sou o hospedeiro perfeito deste segredo e de outros segredos passados e por vir, que em mim guardarei. Vivo de um segredo tão sórdido que me conduz a esta pobre metáfora da árvore. Pudesse eu contar-vos o que me enturva o presente. Pudesse eu ter, em vez de raízes, pernas para caminhar na direcção de um dia claro. Mas nunca me foi dada essa possibilidade de ser outra coisa que não uma árvore cujas raízes soterraram em silêncio. Por aqui os pássaros nunca pousaram melodias nem foram plantadas outras árvores que me fizessem companhia no balançar do vento.
O meu segredo é uma paisagem de alcatrão novo que perdurará no tempo. E eu vivo nele e dele porque inunda todas as minhas horas e o meu sossego de relógio de cuco. Não estou para morrer cedo, resistirei ao corroer daquilo que me atemoriza. E este segredo já não me assusta, apenas mói miudinho como uma dor de dentes que passou mas não esquecemos. «Vivo daquilo que os outros não sabem sobre mim», escreveu Peter Handke. Vivo daquilo que sei sobre alguém, como uma maldição, e que nunca ninguém saberá.