O Verdadeiro Ectoplasma do Fantasporto
Um robusto e enferrujado esqueleto de metal segura o prédio e impede-o de ruir. Os andares de cima estão completamente esventrados, à mercê da chuva e do vento que o flagelam há anos. Uma cerca de chapa contorna o andar de baixo. Se nos apoiarmos nos bicos dos pés, podemos vislumbrar o topo das portadas em vidro e ferro negro. Para além do espesso pó que cobre as janelas, apenas subsiste escuridão no interior. Um negrume defunto, que mantém o Café Luso inerte há quase meia década.
Há 27 anos, o Fantasporto nasceu lá dentro.
Flashback
Outubro de 1980. Dois cinéfilos inveterados, Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira, passeiam pelas ruas de Barcelona. Uma vista de olhos na revista «Guia del Ócio» dá-lhes a conhecer um festival de cinema fantástico, numa pequena povoação a 30 quilómetros de distância. “Não pensámos duas vezes. Metemo-nos num comboio e descobrimos o Festival de Sitges”, relembra Dorminsky.
Conversas com críticos de cinema, como o francês Gerard Lenne ou o belga Gilbert Verchotten, alargaram o espectro do cinema fantástico nas suas mentes, incutindo-lhes o seu lado não visceral. Dois meses depois, de regresso ao Porto, reuniram no Café Luso, “café de artistas e prostitutas na altura, a cinquenta metros daquela que foi muitos anos a catedral de cinema do porto, o cinema Carlos Alberto”, evoca Beatriz Pacheco Pereira.
Na mesa estava também o falecido pintor José Manuel Pereira. António Reis (membro da trilogia directiva do Fantasporto) só não estava presente “porque naquele preciso momento estava a dar aulas no Alentejo”, recorda Dorminsky.
First Edition
“I Mostra Internacional de Cinema Fantástico” foi o epíteto do “episódio piloto” do Fantaporto.
No Auditório Nacional Carlos Alberto e nos Cinemas Lumière, apresentaram um ciclo expressionista alemão (o sinistro jogo de sombras do Murnau, em «Nosferatu») e o cinema romântico francês (Jean Cocteau, Marcel Carnet). Recuperam todos os filmes portugueses feitos com características fantásticas até então. E seleccionaram 15 filmes significativos, dentro das tendências da altura do cinema fantástico. Nomes como Brian de Palma, David Lynch, David Cronenberg e Ridley Scott foram apresentados, pela primeira vez, às audiências portuguesas.
A comunicação social agarrou-se com sofreguidão ao evento. Um jornal nacional meteu na primeira página, em letras garrafais: “Sangue escorre nas ruas do Porto”.
Milhares de espectadores esgotaram as sessões nos 15 dias, à tarde e à noite. O Fantasporto tinha acabado de conquistar a invicta … e o resto do país.
Sucederam-se anos de projeções, plateias cheias e episódios estranhos. Sim, o espectro do fantas é rebelde, não se confina ao Rivoli e percorre as ruas da cidade.
Em 2005, na Rua de Santa Catarina, o silêncio da noite é rasgado pela sirene de um alarme. Um quarto começou a arder no Grande Hotel do Porto. Causa do incêndio? Um grupo de chilenos, convidados do festival e membros da equipa de produção de um filme chamado «Sangre Eterna», resolveram fazer uma sessão Vudu no quarto do hotel.
Por vezes, o espectro também é insubmisso.
Em finais de 80, dois filmes cabeça de cartaz do festival, «They Live» de Jon Carpenter e «Dead Ringers» de David Cronenberg, atravessaram o Atlântico e chegaram a Portugal numa quinta-feira, quando a sua exibição estava prevista para sábado. Ficam retidos na alfândega, em Lisboa. Uma equipa do Fantasporto viajou até à capital, infiltrou-se no edifício alfandegário e roubou os filmes.
Na segunda-feira, procedeu-se ao mesmo processo para os repor.“O diretor da alfândega já não deve ser o mesmo, por isso estou à vontade para contar esta história”, assume Dorminsky, sorridente.
São muitos os episódios caricatos das quase três décadas deste festival. Transbordariam a exígua maquete desta reportagem. Essas pequenas idiossincrasias do espectro começaram por se acumular nos recantos do inconsciente coletivo da cidade. Do país. Da Europa. E do mundo.
Leram bem. Hoje, o Fantasporto é considerado um dos melhores festivais de cinema fantástico do mundo. A Variety, apelidada por Dorminsky como a “bíblia dos espetáculos”, retirou-lhe esse invólucro de género e considerou-o um dos 20 melhores festivais de cinema do mundo.
Mas se a nível qualitativo o êxito é inquestionável e pragmático, prevalece outro aspecto, intangível para muitos, que talvez esteja na génese do genuíno sucesso do festival. O carisma.
Aquilo que faz os lisboetas tirar férias dos empregos, religiosamente, na última semana de Fevereiro e rumar ao porto. O que faz estrangeiros de diversos pontos do globo aterrar no Rivoli. O que faz que os clientes comprem bilhetes para o Fantasporto, indiferentes ao filme que vai estar em cena. Confiança qualitativa? Fidelidade emocional? Um modo de estar e viver a paixão pelo cinema fantástico? Ou todos eles?
“Há um gozo especial das pessoas em virem ao fantas porque sabem que é um espaço de convívio”, refere Dorminky. As pessoas podem viver a experiência cinéfila com liberdade, podem conversar sobre os filmes, ao contrário do que sucede no cinema comercial, que considera “fast-food cinema”.
“Na noite passada, após a projecção do filme «Taxidermia», as pessoas ficaram mais de uma hora no átrio do teatro a discutir o filme. Isso já não existe nos outros espaços”, lamenta o director do festival.
Há participantes que marcam presença no Fantasporto desde o primeiro ano. Em 2001, na altura do seu vigésimo aniversário, a direcção do festival entregou um pin de ouro a 15 pessoas, todas elas de assídua fidelidade desde os primórdios das assombrações cinéfilas na Invicta. “E eles continuam cá”, exclama Dorminsky. “E agora trazem os filhos. Em alguns casos, até os netos”.
A essência humana num festival sobrenatural
O que gera essa paixão pelo Fantasporto? Os participantes viajam, incondicionalmente, todos os anos para assistir ao festival. Os góticos aproveitam para extravasar o seu âmago vampírico e comparecem, com fangs pálidas como neve, em sintonia com a sua pele. Jovens agrupam-se nas escadas do Rivoli horas a fio, a beber cerveja e vomitar cinema.
Numa ânsia de deslindar esse fenómeno epidémico, fui ao encontro de um grupo de cinéfilos que acompanha o festival desde que o viu nascer.
Numa mesa do café Garça-real, a poucos metros do Rivoli, encontram-se António Pascoalinho (Professor da Escola Técnica de Imagem e Comunicação e colaborador da revista Premiere), Filipe Lopes (membro da Cinemateca de Lisboa e colaborador da revista Premiere), Ivan Zalo (funcionário do Fantasporto). António Fundo (professor de audiovisual da Escola Secundária Artística Soares dos Reis e um dos organizadores do CORTA! – Festival Internacional de Curtas-metragens do Porto) juntar-se-nos-ia mais tarde.
Todos estão há mais de uma década ligados ao festival. Pascoalinho é o cinefilus dinossaurus do grupo. Já acompanha o fantas desde 1984.
Para além da paixão pela Sétima Arte, são unificados por outro elemento. Todos se encontram possuídos pelo espírito Fantasporto. Um espectro impossível de exorcizar.
Pascoalinho viaja até aos anos 80 e recorda as francesinhas no café Luso, os copos no bar Pipa Velha – “onde era costume saltarmos para dentro do bar às duas da manhã e cortar presunto” – e as tardes no McDonalds dos Clérigos.
No início de cada edição do festival, era tradição perguntar ao senhor do bar Pipa Velha qual a era a “biblioteca” desse ano. Mas era uma leitura muito peculiar que procuravam: “Ele normalmente não tinha Jameson nem Bushmills. Então fazia o favor à malta de ir comprar à Makro. E depois havia para o festival todo, pois arranjávamos sempre maneira de levar para dentro da sala”, confessa Pascoalinho, enquanto o resto da mesa sorri em cumplicidade.
Qual o intuito? Na sua óptica, para ser um festival, tem de ter festa. Para ter festa, tem de ter público. Para ter público, é preciso interactividade entre os filmes e o público. “O whiskey dava uma boa ajuda”.
O álcool seria um dos elementos catalisadores daquela que definem como a “nata do fantasporto”.
“Uma coisa que sempre maravilhou a malta de Lisboa é que ver o mesmo filme no Fantasporto e no Alvaláxia é uma experiência totalmente diferente. No segundo mandam-te calar. Prevalece o olhar contemplativo sobre a obra de arte. Aqui não. O olhar é interactivo”, refere Pascoalinho.
É muito frequente fazerem-se comentários durante os filmes. “Mandam-se bocas porque o filme as puxa. E depois alguém responde com as contra-bocas. Já aconteceu ser o director do festival a mandar a contra-boca, o que é algo de extraordinário”.
Pascoalinho salienta essa familiaridade, esse jogo implícito na audiência do festival, uma interactividade que “continua a ser algo intrínseco ao Fantasporto”.
Durante a conversa, enquanto se bebe o cafezinho da tarde, são frequentes as brincadeiras e cumplicidades no grupo. Filipe Lopes faz sempre aquele célebre gesto packman com as mãos quando acha que Pascoalino está a divagar nas suas intervenções. Tremoços e cachaços esvoaçam com a mesma espontaneidade. E depois temos Ivan Zalo. Não aparenta ser indígena, desconheço se partilha das suas crenças ancestrais, sobre o roubo de alma pela lente da objectiva. Mas é um facto que, de forma simpática, sublinhe-se, evita sempre a fotografia.
São horas da sessão da tarde. Está prestes a iniciar «The Living and the Dead». A conversa continua a caminho do Rivoli. “O festival nunca acaba quando termina a última sessão da noite”, diz Pascoalinho. “Deve continuar num bar qualquer da cidade, para se digerir os filmes do dia”.
É muito comum os espectadores divergirem no destino nocturno à saída do Rivoli. Mas, momentos depois, os guinchos desesperado dos telemóveis suplicam por uma reunião inevitável. “Há a necessidade de estar em grupo, de falar e trocar pontos de vista sobre os filmes visionados”, refere António Pascoalinho.
Pela Noite dentro
Duas horas da madrugada. Por entre um vão de escadas de madeira apodrecida e paredes cor de vinho autografadas pelo grafitti, sobem-se vários andares, com a música cada vez mais perto. Ascendemos àquele segredo bem escondido que é o Maus Hábitos, na rua Passos Manuel, mesmo em frente ao Coliseu.
O grupo já está lá instalado. Copos de cerveja e maços de tabaco exercem um forte predomínio na mesa mas é «Re-Cycke», o último filme da noite, o verdadeiro alimento da discussão.
Por motivos que não vou desvendar – alergia congénita a spoilers – o filme foi fortemente assobiado numa cena específica. Não necessariamente por uma questão qualitativa, mas pelo azar de focar uma temática que promoveu debates e militância ad nauseam num passado recente.
“No Fantasporto assistimos aos filmes como quem assiste ao futebol. Se gostamos aplaudimos, se não gostamos, assobiamos”, refere José António Fundo.
E, de facto, essa é uma das particularidades que apaixona os habituais do festival e surpreende quem não o conhece. É delicioso observar a reacção estupefacta de um espectador estreante, face ao aplauso entusiasta da audiência a uma cena sanguinária. Uma espécie de transe, um desejo coletivo por sangue, uma paixão pelo fantástico que, em vez de causar repúdio, contagia.
Pascoalinho recorda como nasceu esta tradição, em princípios dos anos 80, um momento que considera “a coisa mais estranha do mundo”.
Não teve nada a ver com violência, nem com tripas ou entranhas, nem com humor negro. Passava o primeiro filme de Baz Luhrmann, «Strictly Ballroom», sobre danças de salão. “Quando o casalinho vence o concurso, a plateia levantou-se a bater palmas. Foi a primeira grande ovação unânime no Fantasporto”.
A moda pegou. Filipe Lopes destaca a euforia com que a sala recebeu a cena do cortador de relva (explicações? Vejam o filme!), no filme «Braindead», uma das pérolas iniciais de Peter Jackson.
Por sua vez, António Pascoalinho destaca «Halloween H20». “A malta já estava um bocado farta da Jamie Lee Curtis levar com o Michael Myers em cima. Quando ela, finalmente, decide decapitá-lo, foi um autêntico momento Zen, com o Rivoli em pé a bater palmas. Ao fim de 20 anos, lá se decidiu a cortar a cabeça ao irmão. Yesss!!!”.
Tertúlias cinéfilas
A mesa vai ficando cada vez mais preenchida. De tempo a tempo, mais uma cadeira é arrastada na ânsia de participar nas conversas sobre a Sétima Arte.
Há uns anos, quando estreou «Cube», de Vicenzo Natali, gerou-se uma discussão acalorada sobre física quântica até o amanhecer. Com uma ressalva, refere António Fundo, “ninguém que percebesse, realmente, de física quântica podia participar”.
António Pascoalinho recorda a apaixonante altercação sobre um erro em «Reservoir Dogs» de Quentin Tarantino, cuja discussão perdura até hoje. “Na sequência final, há três armas, são disparados três tiros e morrem quatro gajos. Até hoje ninguém percebeu como”.
São dezenas de seguidores, oriundos do Norte ou do Sul, um meridiano que o Fantasporto destrói, fecundando uma autêntica comunidade cinéfila que ultrapassa barreiras geográficas.
António Pascoalinho e Filipe Lopes, tal como outros elementos presentes na mesa, são de Lisboa. Todos os anos marcam férias no emprego de propósito para assistir ao festival.
“Vamos curtir os filmes de um género que nos é particularmente querido. Se alguém teve a coragem e a ousadia de nos oferecer isso, temos de marcar presença”, refere Pascoalinho.
“O Fantasporto instruiu-me cinematograficamente. O meu percurso como professor é alicerçado pelo festival”, confidencia José Fundo, destacando também o espírito de companheirismo que se criou, de forma espontânea, “onde amizades, amores e desamores flúem em sintonia, todos os anos, nestas duas semaninhas de Fevereiro”.
São quatro da manhã e o grupo já contabiliza onze pessoas. Recebem, consternados, o aviso do encerramento do bar, mas a noite não acabou. Vão procurar outro local para jogar mímica com títulos de filmes.
Transportam consigo a cultura, a memória, a tradição e a mística do festival. São eles o verdadeiro ectoplasma do Fantasporto.
Reportagem realizada em 2007 e originalmente publicada por Victor Melo (Crónicas da Madrugada) no Diário ‘O Primeiro de Janeiro’.