Manuel Mozos: ‘Satisfaz-me ter conhecido e trabalhado com cineastas mais velhos e poder continuar o meu percurso com cineastas mais novos’
Fevereiro, Cinemateca Portuguesa. Encontro com Manuel Mozos, pouco antes de apresentar na sala um filme sobre a censura. Mas aqui a conversa é sobre Ramiro, o seu regresso a ficção dez anos depois de 4 Copas. Um filme amadurecido que tem algo confessional e que nos leva também a uma história mais vasta, numa conversa igualmente confessional.
São dez anos depois de 4 Copas. Tinha de acontecer este regresso à ficção ou alternância entre ficção e documentário?
Gosto de fazer documentário ou a ficção. A ficção mais pela relação com os atores, a história, os personagens. No caso dos documentários, o lado da imponderabilidade e dispor de tempo para fazer um trabalho mais aprofundado na pós-produção. Poder experimentar coisas e não obedecer a uma linha narrativa.
Podemos dizer esta personagem do Ramiro é também, em certa medida, um pouco o Manuel Mozos?
Pois (risos). Aliás, a intenção deles em determinada altura era usar coisas minhas, da minha personalidade, os ambientes que frequento. Eu aceitei isso. Não é o meu retrato, mas aceitei essa brincadeira.
Até essa proximidade com os livros acaba por ser uma pista natural para o cinema…
Sim, isso acabou por passar para o mundo livreiro, apesar de saberem que também tenho muitos livros e que gosto muito de livros. De certa forma, esse lado arquivista também lá está. É um paralelismo do lado cinéfilo e bibliográfico que é natural.
E não haverá até também em Ramiro uma certa alguma proximidade com o documental?
Apesar do que tenho feito até hoje, há sempre pontos que transitam da ficção para os documentários e vice versa. Por exemplo, as ficções de longa passam-se quase sempre em Lisboa. A cidade tem um papel, é personagem. De alguma maneira quero dar esse lado que poderia ser ligado ao documental.
Como foi então desenvolvimento do argumento com o Telmo e a Mariana?
O argumento foi-me proposto pelo Telmo e a Mariana. Foi simpático oferecerem-se fazer um argumento para mim. Gostei logo da primeira versão que me apresentaram. Continuaram a trabalhar e eu acabei também por me envolver na evolução da história, personagem e dos que estão ali à volta. De certa forma, tem a ver com locais e Lisboa que estão em transformação ou a desaparecer. Por aí sim, haverá esse lado documental.
No filme pergunta-se: vives bem os os teus demónios? Posso estender a ti também essa pergunta?
A pergunta é feita ao outro livreiro durante um programa de televisão que ele assiste. Mas é verdade, poderia ser também lançada para mim. Eu julgo que vivo bem com os meus demónios, tal como o Ramiro vive bem com os dele. Não há arrependimentos e não consegue deixar de escrever ou ter outro tipo de vida. Nesse sentido, talvez ao chegar a uma determinada idade vivemos bem com os nossos demónios.
Se bem que no teu caso, também tiveste alguma felicidade por viver sempre tão perto do cinema, dessa paixão que é tão próxima com a da personagem do filme. Para ti a proximidade com o cinema foi a concretização de um sonho?
Talvez, embora a minha carreira esteja ligada a uma espécie de twist. Isto por causa do meu segundo filme, o Xavier. O primeiro filme (Um Passo, Outro Passo e Depois.., de 1991) correu bem, por isso achei que conseguiria fazer o segundo. Mas houve diversos percalços (falência do produtor francês que ditou o atraso de mais de dez anos na sua estreia). No entanto isso levou-me, por exemplo, a trabalhar na Cinemateca ou a fazer documentários, já que estava mais ligado ao trabalho na ficção. Acabou por ser compensador, apesar de não realizar tantas ficções como gostaria. Mas estou satisfeito por trabalhar na Cinemateca e no Arquivo e ter acesso a certa coisas que a maioria das pessoas não tem.
De que forma essa informação acaba também por se ligar à forma como vês e fazes cinema?
Acaba por ser muito determinante. Apesar de não viver na ânsia de filmar com mais regularidade, o facto de ter acesso a muitos materiais é util para o que posso vir a fazer depois. Até porque já usei muitas imagens de arquivo e documentários que fiz. Mas mesmo quando não uso, esse acesso e conhecimento dos filmes e da história do cinema português e mundial continua a ter o seu peso.
Sentes responsabilidade de ser uma espécie de elo entre um cinema mais clássico português e a geração mais nova?
Não sinto o peso ou a responsabilidade, mas satisfaz-me ter conhecido e trabalhado com outros cineastas mais velhos e poder continuar o meu percurso com cineastas bem mais novos. De resto, fico grato por saber que vários me dão importância ou quererem que lhes dê opiniões. Mesmo aqueles que não tenham tido a sorte de ter um percurso melhor.
Trabalhaste também com o Paulo Rocha, uma personagem tão importante para o cinema português. Achas que esta altura em que assistimos a uma certa efervescência do cinema português se podem comparar esses tempos? Mesmo que estes não sejam os verdes anos do cinema português…
Hoje em dia, mesmo sem continuar a ter um grande espaço nas salas, o cinema português tem tido um bom percurso internacional, sobretudo nos festivais de cinema. Isso é muito estimulante, não só para eles próprios mas para todas as pessoas que trabalham nesta área. Em termos nacionais, é um orgulho ver como muitos filmes têm esse reconhecimento. Sobretudo alguns realizadores bastante novos que já têm esse reconhecimento.
Apesar de não abdicares de fazer o teu cinema, e de sabermos da dificuldade de penetração do cinema português no nosso mercado, o Ramiro é também um filme procura os seus espectadores, certo?
Um filme como o Ramiro pode até nem ter esse perfil comercial e de chamar muitos espectadores. Mas obviamente que me interessa o público, e que o filme tenha muitos espectadores. Se me surpreender e tiver um número de espectadores simpático, melhor.
Só para terminar, e porque vais apresentar aqui na Cinemateca um filme sobre a censura (Cinema: Alguns Cortes – Censura II) não queria deixar de questionar sobre o que se está a passar atualmente no cinema, em que o assédio já motivou até a alteração, ou correção, de filmes (como o Todo o Dinheiro do Mundo, de Ridley Scott). Será que isso pode configurar também uma forma de censura ?
Na altura deste meu filme, os argumentos eram censurados mesmo antes da filmagem. E até mesmo depois de estar concluído, o argumento voltava a passar pela censura. Obviamente, os tempos agora são outros, mas se forem provados crimes que tenham ocorrido entre realizadores, atores ou produtores, essas pessoas devem ser julgadas e condenadas. Agora, do meu ponto de vista, isso não deverá retirar a visibilidade das obras. O mesmo se passa nas outras artes. Há escritores ou pintores que tiveram os seus problemas, mas não é por isso que não se vê o Picasso ou não se lê o Céline. É como retirar o cigarro ao Lucky Luke, ou ao Capitão Haddock ou ao Bogart. Isso é aberrante.
Entrevista de Paulo Portugal em parceria com Insider.pt