Amália, Eusébio e João
“Afro Fado” é uma obra-prima e não há muito mais que possa escrever que explique o que tenho sentido na última semana, desde o lançamento do 4.º álbum de Slow J. Os parágrafos seguintes servem apenas para espalhar amor e admiração pelo artista mais completo da sua geração.
Bem sei que estamos a falar da última pessoa que quer ser comparada ou colocada em rankings de qualquer tipo. Não tenho por hábito procurar fazer listas dos melhores e piores quando discuto objectos artísticos no geral, musicais em particular. Contudo, a distância parece-me tão gritante que vou ter de abrir esta excepção, perdoem-me os mais sensíveis.
É óbvio que 2019 foi há 4 anos e que tínhamos saudades de um projecto desta dimensão, principalmente por estarmos a falar de um artista que tem a particular sensibilidade de escrever sobre a nossa vida, sem nunca ter trocado uma palavra connosco e sem recorrer a lugares-comuns e à lei do berro.
Não é menos verdade que “Afro Fado” é um exemplo claro de que a criação artística não pode ter pressa, nem pode viver ao sabor da constante necessidade de alimentar a máquina de consumo que construímos colectivamente. É algo recorrente na discografia imaculada e honesta de Slow J — não há música descartável a sair do estúdio, a qualidade é sempre privilegiada em detrimento da quantidade e os limites estilísticos são apenas ilusões conservadoras.
“Afro Fado” parece surgir num momento perfeito para João Coelho. Encontramos, ao longo das 14 músicas que compõem o projecto, a versão mais madura do artista até à data. Como o próprio já referiu, este álbum teve funções catárticas, tendo sido produzido num contexto de hábitos mais saudáveis, como acordar cedo, fazer desporto e terapia e passar tempo de maior qualidade com o seu filho e com o seu pai.
Confesso que me deixa sempre feliz encontrar exemplos que demonstram ser possível criar obras de arte, carregadas de introspecção e profundidade, sem ser necessário estar constantemente à beira do abismo. É muito bonito e inspirador apercebermo-nos de que alguém que prefere nascer e crescer no escuro, começa agora, como o próprio assume, a querer pintar com todos os tons disponíveis.
Diria ainda que este álbum nos pode também ajudar a perceber que chegámos ao momento inevitável de encarar de frente o nosso passado colonial e a incapacidade colectiva de compreender os erros que cometemos, tendo impossibilitado a integração de milhares de pessoas que, tal como o Slow J, se sentem de parte nenhuma. Não são de cá, nem são de lá, são de todo e de nenhum lugar, tudo ao mesmo tempo.
É curioso, ou talvez não, que o projecto com mais carga e referências a lutas políticas e identitárias surja no mesmo período em que o reconhecimento artístico se massificou para lá do contexto do hip-hop português, a diferentes espectros políticos e a realidades económicas e sociais bastante díspares.
Alguma coisa Slow J deve andar a fazer bem para esgotar o Altice Arena, 4 meses antes do espetáculo, e ter o álbum português mais ouvido de sempre no Spotify no dia do seu lançamento e, mesmo assim, essas parecerem notas de rodapé. Não quero com isto dizer que os dois dados apresentados são coisa pouca, bem pelo contrário. O que quero tentar explicar é que não parecem ser minimamente relevantes para o processo criativo e motivação do artista e isso, no final do dia, deveria deixar-nos felizes e agradecidos. Eu estou, pelo menos.
Sonhar compensou, craque.