Este incómodo de ser eu
Os meus pensamentos atacam-me ao virar a esquina de uma frase. Inesperada e irreversivelmente, de assalto como bandidos encapuzados, em vez de levarem algo, exigem protagonismo. Sobretudo se calha falar com desconhecidos ou estar em locais que me são estranhos. Manifestam-se para me perturbar as viagens e as conversas.
Estes pensamentos intrusivos também acontecem no quotidiano, quando estou sozinha junto à linha do metropolitano, por exemplo. Não que me queira atirar para o fosso onde a tensão eléctrica seria fatal; felizmente nunca adoeci verdadeiramente. Mas a simples possibilidade da queda, essa responsabilidade e fardo do livre-arbítrio alimenta-se da minha insegurança. São pensamentos parasitários. «A pessoa que desconfia de si própria não possui critério para a realidade — pois só em si pode encontrar esse critério.» Ocorre-me a frase de James Baldwin. Cá está um pensamento de alguém a invadir o meu texto. Alguns pensamentos são parte de mim contra mim, num ringue irreal. Pensamentos com luvas de boxe, que apanham desprevenidos outros pensamentos e fazem deles saco de boxe. Os pensamentos que causam sofrimento, enchem de nódoas negras outros imaculados e límpidos. É difícil evitar esta contenda, quanto mais lhes fujo mais me detêm.
Metade de mim é medo, outra metade corrida. Fujo de mim sabendo que não há sítio que me possa guardar deste incómodo de ser eu para sempre e não outra. Ainda assim prefiro a fuga, o movimento à imobilidade. Mesmo os pensamentos que são produtivos, criativos e saudáveis, julgo que os tenho em excesso. Penso excessivamente, é uma espécie de condenação. Por isso, ando sempre entre dezenas de trabalhos e textos, é-me raro o prazer de nada fazer ou pensar.
Julgo que aos quarenta e seis anos posso afirmar que desconheço de todo o ócio. Ao ritmo a que vivo, pergunto-me se algum dia poderei adoecer. Apanhei um susto há uns anos. Tinha terminado um período intenso de trabalho e permiti-me usufruir de umas pequenas férias em casa para tentar parar. Nos primeiros dias em que me obriguei a nada fazer, comecei a sentir uma dor de cabeça lateral que resistia aos analgésicos e não melhorava com uma boa noite de sono. Sofri então de dores de cabeça diárias e, em vez de descansar nessas férias, preocupei-me como nunca. Os pensamentos sobre ter eventualmente uma doença assaltaram-me de forma obsessiva nesses dias. A ideia que tinha de descanso transformou-se num pesadelo maior do que qualquer trabalho que eu tivesse para fazer. Resolvi consultar um neurologista. Após ter feito exames, TAC e ressonância magnética, os resultados vieram felizmente sem sinais de problemas de saúde, mas as dores de cabeça diárias continuavam.
Foram as piores férias da minha vida, em que tinha decidido que ia descansar e não fazer absolutamente nada. O veredicto do neurologista foi simples; já antes de ter visto os resultados tinha apontado o mesmo diagnóstico: cefaleias tensionais. Ou seja, tinha parado de trabalhar, de escrever, e os níveis de stress por não ter nada que fazer aumentaram. A prescrição do neurologista foi inusitada e simples. «Volte a trabalhar. Há pessoas que têm de ter sempre o cérebro ocupado, é assim que o cérebro dessas pessoas funciona. Não se preocupe. Eu sou uma dessas pessoas, até de férias tenho de levar coisas para fazer, caso contrário não fico bem. Volte a escrever.»
Perplexa e preocupada, voltei a ocupar-me com a escrita. A verdade é que as dores de cabeça cessaram, todavia foi uma triste revelação. A esperança na paz mental que um dia poderia vir a alcançar foi brutalmente extinta pelo diagnóstico daquele médico.
Tenho pensamentos demasiados altos que me fazem amochar o desejo de serenidade. A única solução é deixar de fugir. Aceitar o turbilhão que ocorre na cabeça, este incómodo de ser eu para sempre.