Entrevista: Slow J: “Olhem o quão incrível é a nossa cultura, a cultura que é filha de todos os PALOP”

por Linda Formiga,    14 Dezembro, 2023
Entrevista: Slow J: “Olhem o quão incrível é a nossa cultura, a cultura que é filha de todos os PALOP”
Slow J – Fotografia de MadeinLx

João Coelho, a.k.a Slow J, acaba de lançar Afro Fado, o seu terceiro longa-duração, depois de quatro anos de trabalho. Neste período, Slow J mudou. Começou a cuidar de si, dos outros, a colaborar, a confiar, a explorar sonoridades. Na capa, feita em colaboração com Fidel Évora, Amália e Eusébio, dois ícones da História de Portugal, amados e odiados, dão um aperto de mão que, para Slow J, simboliza ser a matriz do que nós somos, como povo e como cultura.

Na primeira semana de lançamento, os números de audições bateram records, o concerto agendado para o Altice Arena esgotou e levou à abertura de uma nova data. Nestes concertos agendados para Março, Slow J espera assistir a “uma arruaça, a uma celebração” entre artistas, colaboradores e todos aqueles que fazem parte da sua família, os fãs.

Algo assoberbado pela reacção, espera, ele próprio, que o tempo passe para “ver a ilha fora da ilha”, para fazer o rescaldo e ver o seu Afro Fado no contexto da sua obra. Para já, falámos com Slow J sobre o disco, sobre a sua forma de estar, a sua forma de pensar e na forma como Valete foi preponderante na sua forma de ser na indústria.

A entrevista pode ler-se abaixo.

Aquando do lançamento do primeiro álbum, The Art of Slowing Down, dizias ao Público que nunca davas aos ouvintes da tua música a possibilidade de se agarrarem à tua sonoridade, e de quereres estar sempre à procura de uma sonoridade maior. É o teu motor criativo ou surge naturalmente?
Acho que é as duas coisas. Venho muito dessa veia de produção, de pensar, de criar. E todos os produtores que eu tenho como referências tentaram manter-se sempre à frente do que estava a ser feito. Obviamente que eu não sou só produtor, sou artista. E as minhas prioridades não são iguais às que seriam se eu fosse só um produtor. Mas acho que é das coisas mais desinteressantes para mim é estar no estúdio a tentar fazer uma coisa que eu já fiz ou parecido com o que já fiz. Quando saiu o Where U @, que acabou por ter muito sucesso, houve pessoas que me perguntaram onde estava o outro Where U @ do álbum, ou se era um álbum de Where U @’s. E isso, para mim, seria super desinteressante, porque o processo é muito mais de descobertas, de exploração, de experimentação, por vezes contra o que o interesse comercial possa sugerir, mas, e tendo em conta os resultados que tivemos, meio que provamos o contrário.

Nessa mesma entrevista dizias que a tua voz será o único elemento de coesão na tua música. Passaram 6 ou 7 anos desde então, queres continuar a experimentar e manter a tua voz como o único elemento de ligação?
Sim, eu diria que sim. Nessa altura estávamos no The Art of Slowing Down, que é um álbum com produção all over the place, mas a voz é aquele centro. É o ponto de referência que junta todas as músicas. Para o You Are Forgiven, construímos um álbum bastante mais coeso esteticamente, em termos de experimentais. No Afro Fado temos também um bocado disso. Há uma coesão também nos instrumentais do início ao fim do álbum. Diria que, agora, não é só a voz. Mas é uma ideia muito vincada nesse álbum e eu gosto muito do álbum por isso.

“Muitas vezes conheces os artistas pela obra deles, mas não pelas acções como pessoa individual.”

No segundo disco, You Are Forgiven, era notório um certo desencanto com a fama e uma certa dicotomia entre ser o Slow J e ser a pessoa, ser o João. Mas neste disco sente-se uma maior abertura ao mundo.
Curioso.

Este abrir ao mundo é também maturidade?
A percepção de dentro é sempre diferente da percepção de fora. Acho que há vários aspectos da minha vida em que estou muito mais resolvido, mesmo pelo meu equilíbrio emocional que vem de maturar, de ter passado fases mais complicadas, e de eu ter aprendido a dar resposta à minha própria estabilidade emocional. E de alguma forma sinto que talvez possa soar mais resolvido do que do que nos outros álbuns. Não sei se diria que o álbum é menos pessoal. Pode ser uma questão de percepção, por exemplo, quando no Where U @ digo “estou no meu bairro a treinar para correr o mundo/minha perna tá feeling good/ cardio está no ponto/ ‘tive a trabalhar no groove/ diz-me se eu não estou no palco, achas que eu não estou no booth”. Pode não soar pessoal, mas é super. Eu estou literalmente a começar a fazer exercício, a sentir que isso está a mudar a minha energia e a fazer-me bem na forma como interajo com a minha família, na forma como eu tenho energia para atacar o meu trabalho.

Numa entrevista algures aquando do lançamento do You Are Forgiven, falas exactamente do conceito de vida pública e da vida privada. Referes até um livro que é “Seven Habits of Highly Effective People”, onde se diz que para a tua vida pública estar equilibrada tens de ter um grande alicerce na tua vida privada. Foi esse trabalho que desembocou no Afro Fado?
Sim, embora eu tenha dificuldade em retirar conclusões tão cedo. Acredito que o que executámos melhor neste álbum está muito mais relacionado com vitórias privadas, de eu conseguir estar mais aberto, de eu confiar nas pessoas com quem estou a colaborar, de eu conseguir estabelecer relações melhores em todos os aspectos da minha vida. O processo, no geral, é mais eficiente. De álbum para álbum é importante, para mim, que se sinta crescimento. Não me faz sentido estar a lançar um álbum porque o calendário diz que está na hora de lançar um álbum se eu sentir que estou a dizer as mesmas coisas da mesma maneira, e não cresci. Acho que o crescimento pessoal é essencial para que a obra cresça. Às vezes, na minha cabeça, fico a achar que para fazer música melhor, eu tenho de ir aprender mais escalas ou ouvir álbuns mais diferentes, e o processo deste álbum mostrou-me que eu passar de nunca fazer exercício para fazer exercício com muita frequência muda completamente a minha energia, e como muda a minha energia, muda a minha música. Como falámos na altura do Where U @, eu ir ao psicólogo, passar tempo com o meu filho e passar tempo com o meu pai afectou muito mais a minha capacidade de fazer o álbum do que ter feito download de um programa novo para o computador ou arranjar um truque novo.

Capa do disco, da autoria de Fidel Évora

O próximo single será o Tata. E Tata em Kimbundu quer dizer pai. O ser-se pai e ser-se filho está também muito presente neste disco. No You Are Forgiven, ouvimos-te mais virado para dentro, introspectivo e a reflectir o tipo de pai que queres ser, alguém que verdadeiramente encontro o seu sonho mas ciente de que, mais do que nunca é preciso singrar para continuar a sonhar. Aqui no Afro Fado estás mais empenhado no teu ofício a mostrar um tipo de mundo que gostavas que o teu filho experienciasse. Esta transição foi algo que surgiu entretanto, com a relação com o teu pai, com o facto de seres pai?
Não foi premeditado. Houve uma relação natural das nossas relações. O meu filho tem quase 5 anos, já não é aquele ser super dependente que precisa de carinho daquela maneira. É muito mais uma pessoa que interage e desafia. E na minha relação com o meu pai, desde essa altura até agora, acho que aprendemos a criar espaços juntos onde conseguimos nutrir a nossa relação. A base está sempre lá, não é? Mas como somos duas pessoas muito focadas no trabalho, que só veem aquilo à frente durante muito tempo, passamos algum tempo numa dança a tentar encontrar como é que íamos nutrir a nossa relação pessoal.

Há várias coisas no Tata. Há a relação com o teu pai, mas também uma metáfora do sítio de onde se é.
A pátria.

E no final, quando falas do Dino e sobre a questão do hino, achas que isso é uma conversa que devemos ter ou é algo que, dado o backlash que o Dino teve, uma conversa que não estamos preparados para ter? Porque depois dizes “estou a falar demais”…
E “se eu perguntar vou de irmão a primo”. É um bocado aquela questão de como é que uma pessoa que é tão amada no país, toca numa ferida e passa de irmão a primo. É parente, mas já é um parente mais distante. Acho que esse tipo de mudanças [do hino] não deve acontecer contra a vontade do povo. Mas acho que é importante ter a conversa. Pessoalmente, gostava que, se acontecesse, fosse a votos. Não era uma coisa para o português conservador pensar “agora estes a mudar ainda mais a identidade do meu país”, que foi a sensação que algumas pessoas tiveram na altura do Dino. Quando penso sobre essa ideia, questiono-me mesmo se fosse a votos, se seria essa a canção que ganhava. A imagem do hino, para mim, é num estádio de futebol, num jogo da selecção. E quando nos imagino a cantar o “Ó gente da minha terra”, por exemplo, questiono-me se numa votação, questiono-me se “A Portuguesa”, iria ganhar. Se é um símbolo deste país, as pessoas têm de se sentir representadas e acho que a democracia é a melhor solução nesse aspecto. Deveria haver votação. O meu voto iria para o “Ó gente da minha terra”.

Slow J – Fotografia de MadeinLX

No Afro Fado temos várias sonoridades, temos fado, estávamos para ter cante alentejano. O Grandeza saiu por algum motivo do álbum?
Fiz as pazes com isso porque o público já tem essa música. Quando ouvi o Tata como tema de abertura do álbum, pensei que tinha de ser essa. E o Grandeza não encaixava em mais lado nenhum, seria uma introdução mais conceptual. Mas o Grandeza já está na rua, as pessoas podem ouvir esta canção sempre que quiserem. Mas há um lado conceptual e há um lado prático. Eu gosto de incentivar o consumo do álbum na íntegra e uma música que já ouviste é um incentivo a skip. E como já deste um skip, é mais fácil dares outro. Já no You Are Forgiven tentei incentivar esse lado com o lançamento do álbum todo de uma vez, com o álbum mais curto. Eu não tenho ilusões, sei que a maior parte das pessoas não ouve o álbum inteiro e não estou a lutar contra isso, estou a tentar criar uma boa cama para as pessoas que gostam disso e que tenham mais espaço para o fazer.

Mas neste álbum exploras muito mais sonoridades, é mais abrangente.
Acho que o que estou a fazer continua a ser muito semelhante ao que eu fiz até agora. Há uma ideia mais clara, que é a ideia estética que está no título, que vem de uma discussão que tive com o Kalaf aqui há anos sobre como exportas, pela experiência dele com Buraka Som Sistema. E o que ele disse foi quão mais local for o que tu fazes, mais fácil vai ser exportar, porque ninguém vai chegar à Holanda e ter o Afro Fado holandês. Se calhar na estratégia que eu estava a usar antes, já há um artista em Itália que faz uma sonoridade semelhante e isso quanto mais se formos para o trap, para o som de rap nos EUA. Dói-me quando se faz a lista dos 100 melhores e não esteja lá o Sam The Kid. Estou a limitar as referências que estou a tentar colocar no álbum, e dá-me a sensação que, por ser mais concreto, as pessoas percebem melhor. A minha intenção continua a ser a mesma. Fazer música diferente, única, e tentar constantemente chegar mais e mais longe.

“Somos ensinados a apreciar Portugal porque tinha bons marinheiros, mas nós não conhecemos nenhum marinheiro, nunca conheci um herói do mar.”

A capa do disco não é uma escolha inocente. Temos Amália e Eusébio, dois ícones de Portugal. Como é que surgiu esta ideia?
Era uma ideia que estava lá desde o início, tanto que na capa do Where U @ são eles. Não tenho a certeza se foi uma ideia minha ou do Fidel [Évora], mas o encontrar esta capa foi uma coisa de última hora. A forma como fomos trabalhando de capa em capa, aprendendo o gosto um do outro, a desenvolver o nosso estilo, acabámos por dar com a foto numa pesquisa no Pinterest. Tínhamos outras alternativas, mas nenhuma chegava perto do impacto emocional desta. Depois foi um descobrir, um ir pensando sobre o assunto. Dois ícones incontornáveis, por um lado, mas depois têm a sua associação ao regime de Salazar. Eu acho que naquele aperto de mão, vi sempre uma cumplicidade de só eles dois é que compreendem o que é estar naquela posição. No olhar deles, eles não veem público, estão só eles dois. Há uma sensação de solidão, já passei imenso tempo a olhar para a imagem. Não só pela energia, mas por esse lado agridoce. Eles são símbolos de superação, de até onde um português pode ir, ou a prova de alguém aqui mesmo em Portugal pode ir mais longe do que o que a maior parte das pessoas nos vende ou do que culturalmente nós somos ensinados a pensar. E isso é um valor que, no fundo, é que nos fica.

O valor da obra, da personalidade?
Antes de mais, a reação emocional quando vês os dois juntos. É uma coisa que nem existe muito no imaginário das pessoas. Quando vês a foto é lógico que eles se cruzaram e imagino-nos como os filhos daquele aperto de mão. Acho que uma das maiores afirmações que tento fazer com este álbum é: olhem o quão incrível é a nossa cultura, a cultura que é filha de todos os PALOP. Uma cultura que é bonita e que nós não somos ensinados a apreciar Portugal por isso. Somos ensinados a apreciar Portugal porque tinha bons marinheiros, mas nós não conhecemos nenhum marinheiro, nunca conheci um herói do mar. Está tão distante da realidade actual que sinto que há uma confusão na nossa cabeça de “então do que é que nos orgulhamos?”. Com este álbum estou a tentar dizer “olha aqui uma das coisas das quais nos podíamos orgulhar”.

A Amália era sarcástica, mas também pessimista. No Afro Fado parece-me haver celebração, mas também pessimismo pelo meio. Quando dizes “Às vezes o que eu queria era voar daqui nunca mais voltar”. Há aqui uma luta interna entre o idealismo inabalável e a tristeza pelo estado das coisas?
Sim, todos nós vivemos meio nesse estado.

É sermos portugueses também.
Totalmente. Aí estamos a falar do “Nascidos & Criados”, que eu sinto que é onde estou a tentar estabelecer os pontos de partida do álbum. E um dos pontos de partida é sem dúvida esse. Acho que muito do que nos é dado neste momento é que Portugal não tem nada para nós, e que se fizeres em Portugal nunca vai passar daqui. E é quase um incentivo à emigração, que eu acho que é algo totalmente natural e não tenho nada contra isso. Nem emigração nem imigração, que nem poderia como filho de imigrantes. Mas é claro que partilho essa frustração de sentir que metemos as nossas horas, o nosso suor e depois é como se houvesse um tecto. Um tecto fictício, cultural, um tecto que nós somos ensinados desde pequenos na nossa forma de falar. De “isso nunca foi feito em Portugal”. Sempre que eu ouço que algo nunca foi feito em Portugal penso “não, não, não, estamos no caminho errado”. Porque acho que temos um valor igual ao de outros países do mundo. Como indivíduo temos um valor igual ao de todos os outros indivíduos do mundo, temos a capacidade de usar a nossa criatividade e a nossa ambição para chegarmos cada vez mais longe, de construirmos sobre o que temos construído e de essa ideia de “se é português só vai chegar a X” se tornar uma coisa do passado. Escrevi essa frase numa altura em que me apetecia, em que estava a dar com a cabeça nas paredes.

O ruído à nossa volta também o permite. Quase que nos está sempre a dizer isso.
Temos um pouco esse puxar uns aos outros para baixo.

Dizes numa das músicas…
Na Pirâmide. Sim, “ninguém manda um tuga abaixo como o próprio tuga”.

Trabalhas muito com outros artistas. Quando dizes no Where U @ “se eu não estou no palco achas que eu não estou no booth”, mas tens colaborado com imensa gente. Esta interacção com outros artistas é uma estrutura para chegares ao Afro Fado ou à tua música?
Sim. Vejo isso de duas formas. Por um lado, a minha equipa, que vai aumentando e que eu sinto que vai aumentando em qualidade de colaboração para nos permitir fazer trabalhos melhores. Depois a interacção com outros artistas, seja na colaboração que tenho feito tanto no álbum do T-Rex, o 3-14, o “Imagina”, sinto que é por serem artistas que me inspiram, que me puxam e me dão aquela pica de “embora tentar criar alguma coisa” e, ao mesmo tempo, sinto que me cria um espaço de liberdade. Estou há 4 anos a trabalhar neste álbum e as paredes estão super definidas, mas há imensas coisas que eu gosto, e que acho interessantes, que eu não posso fazer neste álbum porque daqui a 10 anos não vai fazer sentido. E sinto que nesse esforço de deixar os álbuns coesos, sabe-me bem colaborar com outros artistas, porque é um espaço de liberdade. É uma coisa que enriquece, fora as coisas que saem para o público. Às vezes troco mensagens seja com o Ivandro seja com o T-Rex, para saber como é que as coisas estão a correr, se a malta está bem. Quando são os mais novos para saber se estão a fazer exercícios, se estão a cuidar deles, a ser aquela mãezinha também. Porque tive artistas mais velhos que se preocuparam comigo, que cuidaram de mim quando eu estava a começar. Veio-me à cabeça o Valete pela forma incrível como me tratou quando eu era um técnico de som.

Muitas vezes conheces os artistas pela obra deles, mas não pelas acções como pessoa individual. Eu tinha chegado a Portugal da universidade, fui entregar o currículo a um estúdio porque sabia que ele gravava lá e eles aceitaram-me como assistente — o meu trabalho era abrir a porta do estúdio, receber as pessoas, malta da rádio, artistas, sempre com um sorriso na cara de olá, como estão, podem sentar-se aqui, querem um café. Conheci quase toda a gente que possas imaginar, muitos deles nem devem lembrar-se que era eu. Fui muito martelado na universidade que se tu fizeres isso com o maior brio, as pessoas vão ver o brio que vais ter a trabalhar dentro do estúdio. Foi daí que começaram a surgir as minhas primeiras oportunidades. Antes era só sentar-me no fundo da sala a assistir, porque estava lá o engenheiro de som a trabalhar. Eventualmente, o técnico de som do Valete partiu uma perna e o Valete deu-me o toque, apesar de eu ser super inexperiente na altura, para fazer as sessions dele. O gajo ia buscar-me a casa, a uns 40 minutos da casa dele, levava-me ao estúdio, gravávamos até às horas que fossem, saíamos e ele levava-me ao restaurante — e eu sem dinheiro para nada —, ia deixar-me a casa dos meus pais seja às 4 ou às 5 da manhã, quase todos os dias durante uns 3 meses. Ao fim do primeiro mês, ele diz-me “Johnny, manda-me o teu NIB”, e ele pagou-me bué da bem. O mês de trabalho e todos os que se seguiram. E eu só percebi mais tarde que imensa gente passou pelo contrário, de ninguém cuidar de ti, ninguém ter essa preocupação extra contigo, antes pelo contrário.

Actualmente faço esse esforço — e não sou nada perfeito — de tentar encontrar com os técnicos de som, da malta com quem trabalho, e digo “estás a cobrar-me isso, podes cobrar mais”, porque eu sinto que é como um vírus, é cultura de trabalho. Todos os que são tratados de uma maneira, vão tratar os outros da mesma maneira. Vai ser o natural, vai ser raro aquele que vai pensar “fui tratado de uma maneira errada, vou tratar os outros de outra maneira”. Quanto mais fizermos isso, vai melhorar a indústria inteira, vai melhorar as condições para toda a gente. No Pirâmide falo disso. Nós não podemos estar em cima e pisar os que estão em baixo. É a oportunidade de puxarmos, e quanto mais puxarmos mais como um todo, para a música em Portugal crescer. Não vai ser um artista sozinho, vai ter de ser um trabalho conjunto. Quanto mais conseguirmos tornar isso um bom jardim, que está bem regado, vai ser bom para toda a gente.

O colectivo é o que te motiva também a fazer as colaborações…
Sim. Quando o Ivandro comprou a casa dele, fiquei super feliz. Vai mudar a vida dele, a vida da família. Há uns quantos artistas com quem tento ir mantendo o contacto, e outros que fazem um checking on me. Do “como é que estás, estás a andar bem”. Foram 4 anos focado, focado, focado, checka só para veres se não deste em maluco. [risos]

Falas disso no primeiro disco, que tiveste um burnout. É a força do perfeccionismo.
No processo deste álbum estive uns 6 meses sem fazer música. A frustração é encontrares um caminho, a forma de passares do tecto. Às vezes encontras um tecto e precisas de encontrar uma pessoa, precisas de mudar alguma coisa.

Falas na curadoria do álbum. Há artistas que não gostam de plataformas de streaming porque não promovem a cultura de disco, de ouvir um disco do princípio ao fim. Pensas nisso?
Penso. Acho que o consumo é o consumo, o ouvir música é muito mais irracional do que o que nós às vezes tentamos tornar isto. Se estou zangado depois de um dia de trabalho, eu não vou pôr o Top 50 a dar, vou pôr uma música que bata certo com o meu sentimento. Acho que os seres humanos têm essa necessidade básica de experienciar música. Quanta malta é que comprava um CD inteiro para ouvir só uma música. A forma como as pessoas querem ouvir é com elas. Eu faço como eu gosto. Em relação aos singles, eu tento separar do processo criativo. Eu sei que estou dentro daquelas paredes, mas eu venho aqui todos os dias, escrever qualquer coisa ou fazer um beat. Eventualmente, o álbum vai ganhando essa forma. Como vamos encontrando a forma do álbum, vamos encontrando os singles. Por exemplo, o Where U @ ganhou uma força extra por eu estar “desaparecido” durante alguns tempos e ter essa energia de estar de volta. Tento trabalhar os singles nesse sentido, de fazerem sentido com o momento, do que é que eu quero dizer aos fãs. A única coisa que eu gostava no Spotify — e se me estiverem a ouvir — era a opção de a música parar quando chegas à última música de um álbum. Eu parei para ouvir o último álbum de Kendrick Lamar e no final põe-me uma música random a tocar. E não sei onde foi o fim do álbum, qual é a minha opinião do álbum, porque eu preciso de um fim para saber. É a única coisa que me chateia.

Mas quando eu construo o meu álbum, construo-o com consciência de que as pessoas não vão ouvi-lo do princípio ao fim, não vou construir um álbum que não funciona por causa disso. Quero dar a melhor experiência às pessoas que têm esse carinho, porque é uma ligação muito forte. Na minha vida como fã é raro o artista cujo álbum ouvi do princípio ao fim e que, no final, não fiquei fã para o resto da vida. Gosto de pensar na relação do fã com o artista como uma relação de amizade. Há muitos paralelos que acho engraçados, estás numa discoteca ou no Uber e a música dá. É igual a passares no café e reparares numa pessoa. Ou um amigo teu apresenta-te uma música, é como um amigo teu apresentar-te outro amigo e tiveram uma interacção. A primeira vez que dás o toque e há um one-on-one, é outro nível, já não é um conhecido, há proximidade. Acho que um álbum é o casamento. O álbum é o nível a seguir, é uma amizade. Uma das coisas que vejo muito subvalorizadas hoje em dia nas narrativas que vendem aos artistas é que os singles fazem muito sentido no imediato, mas eu acho que a minha carreira é muito mais feita dos meus álbuns do que dos meus singles. Se uma pessoa, num dia, ouvir um álbum inteiro, o nível de fã que uma pessoa fica não tem nada que ver com ouvir 10 singles.

Vais ter um concerto esgotado no Altice Arena. É a sala maior de Lisboa, estás nervoso? [à data da entrevista, a segunda data não estava ainda confirmada]
Nervoso ainda não, só espero que as pessoas se divirtam, que seja uma arruaça, uma celebração. Trabalhámos muito para chegar até aqui e a sensação dos resultados é inacreditável.

Uma palavra final. Perdemos a Sara Tavares. Para as pessoas que não a conheceram era uma pessoa muito querida, para as pessoas que trabalharam com ela, ainda mais. Ela deixa uma marca muito grande na tua carreira e na carreira de muitos artistas. Em Origami dizes “Dentro eu tenho mar, eu tenho Sahara” e pegando na homofonia das palavras, a Sara marcou muito e está na carreira de inúmeros artistas. Todos eles têm um bocadinho de Sara.
Sem dúvida. Uma artista incrível, mesmo a tocar guitarra. Uma energia incrível, mesmo incrível. Sinto que trouxe um pesar à semana de lançamento do álbum que foi importante para mim. Ajudou-me a focar nas coisas importantes, a deixar as merdinhas de lado. O nosso tempo é limitado, quem me dera deixar metade do que ela deixou em boa energia, das ideias e do empurrão que deu à nossa cultura inteira. Espero que venha um período para as pessoas redescobrirem a Sara. Deixa um corpo de trabalho brutal.

Slow J actua no Altice Arena a 7 e 8 de Março de 2024. Bilhetes aqui.

A entrevista contou com a colaboração de Miguel Santos

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