O dia da mulher, no dia seguinte
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Uma curta viagem de táxi ontem na cidade de Coimbra deu-me a oportunidade de ouvir uns minutos de depoimentos sobre o Dia da Mulher na Rádio Renascença – depoimentos prestados por jornalistas e colaboradoras dessa estação de rádio. Basicamente, o teor dos depoimentos era um conjunto de variações sobre o tema lapidarmente expresso por uma jornalista da Renascença do seguinte modo: «hoje, no Dia da Mulher, mando um grande beijinho às duas mulheres da minha vida, que são a minha mãe e a minha filha».
Pus-me a pensar, então, na curiosa posição da mulher na mentalidade cristã, pensamento que já começara de manhã quando deparei com o post de um evangélico da Bahia, que achou por bem, no dia 8 de Março, transcrever, do Novo Testamento, a seguinte citação: «Que a mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. Não admito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem; mas sim que se mantenha em silêncio. Adão foi o primeiro a ser formado; depois Eva. E Adão não foi enganado, mas foi a mulher que, deixando-se enganar, incorreu na transgressão. Todavia, será salva através da parturição de filhos» (1 Timóteo 2:11-15).
A linha de pensamento que me surgiu de seguida foi como esta noção cristã da mulher como mãe, esposa e filha dificilmente encontra fundamentação nas palavras atribuídas a Jesus, quer nos Evangelhos canónicos, que nos apócrifos. No Evangelho de Lucas, ouvimos palavras estranhas e incómodas da boca de Jesus: «aqueles que foram julgados dignos daquela <outra> vida e da ressurreição dos mortos não se casam nem as mulheres são dadas em casamento» (Lucas 20:35). No grande comentário ao texto grego de Lucas escrito por I.H. Marshall, lemos que «a ideia fundamental que está aqui a ser verbalizada por Jesus é que o casamento como meio de procriação já não é necessário» (p. 741). Na realidade, em várias correntes do primeiro cristianismo, a procriação de filhos era vista como algo de incompatível com o propósito de seguir Jesus.
Num livro apócrifo do primeiro cristianismo chamado «As Grandes Questões de Maria Madalena» (de que nos chegou apenas um fragmento citado por um autor mais tardio), lemos que Jesus deu uma revelação a Maria Madalena. «Levando-a para a montanha, ele orou e depois extraiu do seu flanco uma mulher e começou a ter relações sexuais com ela. E apanhando a ejaculação, mostrou-a a Maria Madalena, dizendo que “assim se deve fazer, para que vivamos“». Perante isto, Maria Madalena – quiçá compreensivelmente – desmaia. (Epifânio, «Panárion», 26.8).
A intenção (atribuída a algumas correntes do cristianismo primitivo) de evitar que o acto sexual tivesse finalidade procriativa parece re-equacionar o papel da mulher, que para esses primeiros cristãos não era vista como pessoa cuja identidade se esgota na tríade mãe/esposa/filha. Talvez seja nesse sentido que devamos interpretar outra passagem célebre da literatura cristã apócrifa, onde Maria Madalena também está presente. No final do apócrifo Evangelho de Tomé, Pedro diz a Jesus: «Maria Madalena devia afastar-se de nós, pois as mulheres não merecem a vida». Ao que Jesus responde: «irei orientá-la de modo a fazer dela um macho, para que também ela se torne um espírito vivo como vós, machos. Pois toda a fêmea que se torne macho entrará no reino dos céus».