Encenador Nuno Cardoso leva “Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes, a palco com dedicatória ao pai

por Lusa,    11 Fevereiro, 2024
Encenador Nuno Cardoso leva “Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes, a palco com dedicatória ao pai
Fotografia de Denise Jans / Unsplash

O encenador Nuno Cardoso está a adaptar para o palco o livro “Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes, que considera “a grande obra dos últimos 50 anos da literatura portuguesa”, num espetáculo dedicado ao pai a estrear-se em abril. 

Hoje com 52 anos, o também diretor artístico do Teatro Nacional São João (TNSJ) leu aquele que é um dos principais livros da obra do escritor português – editado em 1983 – pela primeira vez nos anos 1990, mas só numa releitura há cerca de 10 anos decidiu adaptar o romance de perto de 700 páginas ao teatro, mesmo sem saber ao certo “como”.

Tal como o pai de Nuno Cardoso, que passou quatro anos na Guiné-Bissau em duas comissões durante a Guerra Colonial, os protagonistas de “Fado Alexandrino” são ex-combatentes que, reunidos, partilham as suas histórias e as suas reflexões sobre as suas vidas e sobre o Portugal antes, durante e depois da revolução do 25 de Abril.

“Achei que era absolutamente essencial trabalhar sobre este romance, porque era um desejo anterior e porque continuo a acompanhar a vida do meu pai e porque agora, com a idade que ele tem, a experiência que ele teve da Guerra Colonial acompanha muito do seu tempo, da sua reflexão”, disse à Lusa Nuno Cardoso, depois de um ensaio, ainda muito preliminar, da peça, no Mosteiro de São Bento da Vitória, dois meses antes da estreia, que vai acontecer no TNSJ, no Porto.

O pai, de 81 anos, “é muito relutante em contar” as histórias do período que esteve na guerra, sendo capaz de estar três horas a descrever um quartel, “mas quando se lhe pergunta alguma coisa [como] por que é que o melhor amigo dele faleceu logo no dia em que chegou, o que é que lhe aconteceu, ele não diz”.

O encenador realçou que o texto de Lobo Antunes tem uma característica “extraordinária”, que é o de existir numa “situação zero teatral”, ou seja, “é uma refeição, são pessoas sentadas à mesa. Que é a situação zero da situação teatral. Isto é tudo construído como uma pirâmide ao contrário. Eles só estão a comer batatas com bacalhau. Eles só estão a beber champanhe. E eles só estão a beber whiskey. É fascinante. Para um criador é fascinante tentar fazer isto”.

Para Nuno Cardoso, a Guerra Colonial permanece presente hoje, mesmo que não haja – ou não se queira – discussão sobre ela: “Acho que foi um ferro em brasa e um ferro em brasa marca, de uma forma muito violenta e para sempre. Toda a narração que existe sobre o 25 de Abril, sobre a nossa democracia, acho-a às vezes pouco vital, muito celebratória. A celebração ou o elogio normalmente não levam à discussão e a discussão representa o vigor das nossas crenças porque, se elas se cristalizam, rapidamente o discurso populista as pode deitar abaixo e nós damo-nos conta de que já não são crenças, são chavões que repetimos”.

Pela importância que atribui a “Fado Alexandrino” e à forma como o romance aborda uma verdade – entre outras – sobre Portugal nos últimos 50 anos e à sua história familiar e pessoal, Nuno Cardoso decidiu que seria esta a peça fundamental para assinalar a efeméride do 25 de Abril este ano.

“Estou consciente de que não é um livro celebratório, sempre estive. […] Nós temos 50 anos de silêncio para com a Guerra Colonial e os efeitos que teve nas pessoas que lá estiveram. Essas pessoas construíram a nossa democracia, muitas delas sentem-se agora abandonadas. Como não encarámos de frente o ato de agressão que foi a Guerra Colonial. Agressão aos nossos países-irmãos, agora irmãos, mas também a várias gerações. Se não medimos a consequência dos nossos atos, aquilo que representou na vida destas pessoas, não nos conhecemos a nós próprios, se não nos conhecemos a nós próprios não conseguimos lutar pela democracia que criámos”, afirmou o encenador, que sublinhou sentir-se “maravilhado e encantado” pelo Portugal de hoje, que é tão diferente daquele que saiu da ditadura – para melhor.

Questionado sobre como se poderá encaixar esta peça no contexto da discussão atual sobre a descolonização do pensamento, Nuno Cardoso responde não saber, porque não foi isso que o trouxe até aqui.

“Fiz o ‘Ricardo II’ na Cova da Moura, passei um ano pelas prisões, fiz o ‘Porto S. Bento’ com os antigos moradores que estavam a ser expulsos muito antes de esta cidade se tornar Ryanair, estive no Ao Cabo [Teatro], no [Teatro Carlos Alberto], posso ser um ser muito irritante, mas acho que sempre fui muito honesto no meu trabalho”, disse o também ator.

Na mesma sequência, Nuno Cardoso acrescentou: “As pessoas podem gostar, podem não gostar, não o faço para provocar ninguém, faço-o por causa do meu pai e, quanto ao resto, querem falar comigo? Querem-me mandar à merda? Por favor, façam-no, mas façam-no, porque a gente tem é falta disso, não só vontade de criticar os outros, mas também de poder de encaixe”.

“Este livro não é meigo. As cenas que existem em Moçambique não escondem nada. E, portanto, como falar de Portugal sem isto? Como celebrar a nossa democracia sem isto? Será que o fado, o nosso fado, tem de ser sempre o percurso entre o Zeca [Afonso] e a Dulce Pontes? Nós somos filhos destas ações e perpetuamo-las na mesma e, portanto, temos de as discutir”, disse o encenador.

Uma vez, numa conversa sobre a guerra, como outras em que a linha entre ficção e realidade é difusa, o pai contou-lhe que, sendo cabo operador cripto, quem o rodeava tinha por missão protegê-lo. Passado um pouco, o pai de Nuno Cardoso prossegue: “Menos o último homem, o último homem, se visse que ia morrer, tinha como função matar-me”.

“Se de facto é isso que lhe aconteceu, como é que se vive sabendo que os seus camaradas, eles todos, o que sobrasse tinha como função matá-lo a ele? Por que é que a gente tem vergonha deles? Porque mataram moçambicanos, mataram angolanos, porque perpetuaram um regime racista, colonial? Sim, eles estavam lá a fazer isso. Sim, os capitães de Abril também lá estavam. A nossa democracia nasce desse sacrifício, portanto a nossa democracia nasce também dos sacrifícios dos nossos países-irmãos. Se não confrontarmos isso como é que também os podemos chamar irmãos?”, disse.

Para além de lhe permitir fazer um espetáculo com uma componente pessoal, o que preocupa Nuno Cardoso na criação de “Fado Alexandrino” para o teatro é ser indigno da obra em si.

“O que me preocupa é perder a reverberação poética e absolutamente epopeica deste livro. Isso preocupa-me bastante. Nunca poderei fazer Lisboa da maneira como ele a descreve. Nunca poderei gastar 20 minutos… devia poder. O teatro devia poder fazer isto. Devíamos poder fazer isto a prestações, mas não podemos. E, portanto, a única coisa que me preocupa é que isto seja indigno do ‘Fado Alexandrino’, não o que as pessoas vão pensar ou se é abrasivo ou se ficam ofendidas. O livro é extraordinário”, afirmou.

“Fado Alexandrino”, para maiores de 16 anos, vai estar em cena no TNSJ entre 05 e 28 de abril, sendo uma coprodução com o Centro Cultural de Belém (onde estará em 03 e 04 de maio), o Teatro Aveirense e o Theatro Circo.

Com encenação e dramaturgia de Nuno Cardoso, a peça conta também com Fernando Villas-Boas na adaptação e dramaturgia, tem cenografia de F. Ribeiro e música de Peixe.

A interpretação é de Ana Brandão, António Afonso Parra, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias, Telma Cardoso, Sérgio Sá Cunha e Roldy Harrys.

O TNSJ disponibilizou já um dossiê pedagógico sobre o espetáculo, convidando professores e alunos dos ensinos secundário e superior a assistirem à peça.

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