Os imigrantes são bem-vindos, os racistas não
Num fim-de-semana de má memória que agora procuramos deitar para trás das costas, o centro da cidade de Lisboa serviu de pano de fundo para uma lamentável e vergonhosa mancha na nossa existência coletiva. A marcha alimentada por motivações flagrantemente racistas e xenófobas, com o declarado objetivo de destilar ódio perante quem escolheu Portugal como porto-de-abrigo, desfilou despudoradamente, no conforto da luz do dia, com cobertura mediática e proteção policial, a escassos metros do local onde, há anos, a extrema-direita já tinha deixado rasto de morte. Impedidos de realizar o cortejo anti-imigração com forte pendor islamofóbico na zona da Mouraria por razões de segurança, o cenário sinistro não deixou de se compor, entre residentes e visitantes da cidade que certamente não procuravam nem desejavam partilhar as ruas com reedições do que de pior se pode encontrar ao folhear manuais de História.
Se é notório que marchas neonazis como esta mimetizam manifestações semelhantes organizadas noutros países da Europa ou do outro lado do Atlântico, é importante ter em conta que não é a primeira vez que um evento desta natureza acontece em Portugal. Além disso, a retórica anti-imigração e o discurso marcadamente racista não são novos no nosso país e já se infiltraram há muito, embora frequentemente de forma velada e latente, não só nas mais vulgares interações sociais, como também nos arsenais da dialética política. Observamos, no entanto, uma importação e interpretação cada vez mais agressivas, extremadas e frequentes dos discursos políticos anti-imigração e de retóricas xenófobas e islamofóbicas como a da “grande substituição”. Estas narrativas têm sido progressivamente normalizadas e surgem até, cada vez mais, como assunto-chave em contexto de campanhas eleitorais nacionais, contribuindo para semear o medo e a radicalização nos quais a extrema-direita medra.
É neste contexto profundamente deplorável que se exige, por um lado, enfrentar mitos e, por outro, não hesitar na defesa dos mais elementares valores guardiões da dignidade humana. Em primeiro lugar, é relevante assinalar que é falso que em Portugal exista um histórico de problemas induzidos pela imigração. Em segundo, ao contrário do que se possa querer fazer parecer, nem o número de imigrantes representa uma parcela substancial do total de residentes, nem Portugal foi, em algum momento, um país completamente homogéneo do ponto de vista étnico ou religioso.
Aliás, Lisboa (e país no seu todo) torna-se mais rica — e enriquecedora para quem a visita ou habita – pela convivência harmoniosa entre culturas e pela adequada integração de tantos quantos os que aqui desejam perseguir e consolidar os seus projetos de vida. Minhotos, algarvios, beirões, alentejanos, insulares, imigrantes da Lusofonia, de outros pontos de África ou da América, do Extremo ou do Médio Oriente, do Indostão ou de outros países da Europa contribuem, em conjunto, para construir e sedimentar uma comunidade onde qualquer um pode acrescentar e ser acrescentado, onde é possível prosperar independentemente de circunstâncias ou particularidades individuais. O respeito mútuo, a disponibilidade para a aceitação e partilha serão, por isso, elo de ligação essencial dos vários mosaicos culturais que compõem o nosso espaço comum e que podem metamorfosear as diferenças em valor acrescentado para todos. Mais ainda, num país tradicionalmente voltado para a emigração, que respeita e acarinha a sua diáspora, seria até redobradamente cruel que votássemos quem nos procura ao tratamento de indignidade que não desejaríamos ver dirigido aos nossos compatriotas.
Contudo, sugiro que se imponha alguma cautela no argumentário utilizado como contrabalanço à diabolização dos imigrantes, sob pena de perversamente se alimentarem os mesmos pressupostos moralmente condenáveis em que a primeira radica.
A visão utilitarista em relação aos imigrantes, segundo a qual devem ser aceites — ou pelo menos tolerados — porque contribuem para a Segurança Social ou porque são necessários à Economia para desempenhar as tarefas menos desejadas (por exemplo no atendimento ao público, na higienização, na construção, na distribuição, nos armazéns ou nas copas) não só não é humanista, como, mesmo que de forma não intencional, acaba por estar ancorada precisamente nos mesmos preceitos que alicerçam o pensamento da extrema-direita xenófoba. Subentende que o salvo-conduto para poderem existir num espaço que ainda não lhes é reconhecido como também sendo seu por direito é estarem disponíveis para servir as necessidades de quem nele já vivia. Aprofunda-se, desta forma, a separação entre um grupo de pessoas a quem é salvaguardado um direito natural à existência em determinado local e outro cuja aceitação no mesmo meio — e acesso à plenitude dos seus direitos — é condicionada pela sua disponibilidade para suprimir as carências sentidas pelo primeiro grupo. Numa lógica desumanizante que adensa ao extremo divisões de classe, a aparente gentileza que transparece do aval à presença dos imigrantes dispensa um verdadeiro esforço de real integração e um olhar atento às condições (frequentemente miseráveis) em que vivem e trabalham, negando-se a cidadania plena e condenando-se estas pessoas à mesma invisibilidade em que se desvanecia a existência de muitos dos nossos familiares emigrantes nas profissões marginalizadas que também abraçaram nos seus países de acolhimento.
É, assim, absolutamente necessário que estejamos disponíveis para acolher desligados da procura de quaisquer benefícios materiais e que vejamos estas pessoas como mais do que um ativo económico. Merecem o respeito que é devido a qualquer ser humano e são cidadãos de pleno direito, que se querem empoderados, civicamente ativos e livres de se realizarem por inteiro no lar que escolheram. Só partindo destas premissas seremos verdadeiros escudos perante a incivilidade, a crueldade e a desumanização.
Saber receber, acolher e respeitar os direitos humanos inalienáveis a qualquer pessoa dignifica-nos como país, ser palco de demonstrações de ódio racista não. Os imigrantes são bem-vindos, os racistas não.