Entrevista. Luiz Fernando Carvalho: “Reivindico a palavra como um elemento estrutural da linguagem cinematográfica”
A Paixão Segundo G.H. é a segunda longa metragem do experiente cineasta carioca Luiz Fernando Carvalho, com quase quatro décadas “a bater claquetes”. Seja na direção de várias novelas e mini séries, na TV Globo, mas também em dois filmes únicos: Lavoura Arcaica, de 2001, considerado um dos melhores filmes brasileiros, adaptando o universo do escritor Raduan Nassar; o outro estreia esta semana, com o selo da Nitrato Filmes, em salas selecionadas de Lisboa, Porto e Coimbra.
Traduzir pensamentos por imagens, extrair das palavras um correspondente visual. Desde sempre, esses foram alguns dos desafios mais ousados do cinema. Pergunte-se ao cineasta Luiz Fernando Carvalho — considerado por alguns como mais “sofisticado realizador brasileiro” — como captou com câmara de cinema e película a essência surreal e transcendente do longo monólogo interior que envolve A Paixão Segundo G.H., a obra da autora brasileira de origem ucraniana, Clarice Lispector. E até como entregou à atriz Maria Fernanda Cândido, com quem colabora há décadas, o espaço do olhar e o enquadramento do rosto num enigmático e contemplativo ecrã claustrofóbico que nos interroga. Como essa tremenda sensação de fusão apenas recordamos um equivalente na singularidade do projeto Super Natural, de Jorge Jácome, em que o ecrã se transforma numa voz íntima que nos transporta e questiona.
Apesar da longa carreira de Luiz Fernando como realizador de novelas (Tieta, Pedra Sobre Pedra) e mini séries (onde se destaca a adaptação do romance de Eça de Queirós, Os Maias), este filme assalta-nos um curioso mapa de filiações fílmicas, que vão de Alain Resnais a Marguerite Duras, ou até ao poder da palavra na obra de Jean-Marie Straub. Isto além da assumida vénia a uma outra ‘paixão’, A Paixão de Joana d’Arc, que Carl Dreyer realizou em 1928, com Maria Fernanda numa atualizada versão de Maria Falconetti…. Foi a procura de resposta a essas questões que nos levou ao Porto para uma fascinante conversa com a duração de uma longa-metragem.
Tudo começou com a leitura (como deve ser, sobretudo neste caso) das 135 páginas do livro de Clarice. Algo que fizemos num frenesim, de rajada. Poucas horas depois era o confronto na tela, já com o olhar de Maria Fernanda, assumindo a escultora de vida folgada, com as iniciais G.H., no alto do seu apartamento com vista para Copacabana, em meados dos anos 60, portanto, no acordar da ditadura militar. Precisamente no dia em que a empregada Janair (Samira Nancassa) se demite e deixa a artista burguesa no seu isolamento. E até com um súbito desejo de limpeza.
Entregue à sua descoberta, G.H. abrirá a porta do quarto da empregada para dar de caras com uma barata. Só que, ao entalar a criatura rastejante na porta, ela não sucumbe e fica a verter o seu interior esbranquiçado. Um momento de asco que provocará uma catarse oposta abalando todo o seu ser, a sua condição, reconduzindo-a aos primórdios da divindade.
Entre o poder das palavras e as imagens gera-se assim uma conversa que não evita o choque e atualiza ainda novos temas, como a fusão do rosto da empregada com o da barata, criando um paralelismo de dimensão social com os ‘imundos’ referidos no texto. Diz Luiz: “Interessa-me potencializar ao máximo a literatura e potencializar ao máximo o cinema, fazendo com que essas duas potências se atritem, se encontrem e gerem uma terceira coisa. É essa terceira coisa que é inominável para mim e que é o meu olhar sobre a escrita”.
Interessante até como o cineasta criou um dispositivo tecnológico destinado a acentuar o diferente balanço visual do filme – chamou-lhe ‘lente G.H.’ No fundo, “uma lente com uma tensão entre duas óticas contrárias: uma grande angular que deforma tudo quando se aproxima; e, mesma lente, uma teleobjetiva que, ao aproximar-se, torna o universo abstrato, quase à beira do abismo”. Isso permite revelar um estado mais alterado da personagem, como uma ausência, sem apoio. “Dessa forma, filmo textura do rosto dela como se fosse uma paisagem. Foi uma lente construída para essa leitura epidérmica do mundo, que é uma leitura da própria Clarice. É aí que G.H. cria uma simbiose com a barata, com o apartamento, com o mar, com as suas outras. Ou seja, permite entrar microscopicamente nas coisas e fazer com que as coisas entrem na gente”. É aí que o filme nos mira e observa. Olhando-nos nos olhos, com uma intimidade pouco vista na sala de cinema.
O espaço dos ‘invisualizados’
Singular é, nesse sentido, a entrega da atriz Maria Fernanda Cândido. Desde logo, na preparação do timbre, na respiração, na vocalização, “pois cria várias vozes, numa polifonia em que a literatura é apenas um dos elementos”. Naturalmente, só poderia ser feito por uma atriz capaz de se desdobrar em múltiplas atrizes. E diferentes géneros. “Tal como as lentes, nós lidamos também com os opostos. Entre o extremo rigor e a improvisação”, como refere.
É um jogo fascinante que o cinema de Luiz Fernando nos proporciona. Como se essa câmara criasse uma dimensão kafkiana, uma metamorfose entre o ser e o seu duplo, o monstro. É então essa transformação que G.H. vislumbra na empregada o rosto da barata, sendo “algo que trás para o filme a questão da luta de classes”. E é fundamental pensar nisso, como esclarece o realizador, numa inovação do livro ao filme, “pois permite atualizar a questão dos invisíveis, os ‘invisualizados’, que está presente no livro, embora numa frase menos explícita. Porque essa Janair, ela é do século XXI, ela é de 2024. Mesmo numa história ambientada em 1964. Eu senti a necessidade de trabalhar com a História. A Clarice, no momento em que escreveu, talvez tivesse de deixar nesse ponto a questão. Mas hoje a História está connosco. Esse é um elemento ancestral, um elemento feminino importante do filme”.
Inevitável e fascinante esta leitura mais política que o filme sugere. Leitura política e paternalista, já se vê. “É a luta de classes que se vai desdobrando nas outras camadas. Há uma contestação crescente,” confirma. “E a cultura e as leis do homem, escrita por homem. Como a Bíblia foi escrita por homens”. Daí as demandas com que nos confronta: “quem é que define os que são imundos? E, porque eu, mulher (a personagem), sou inferiorizada? Porque a paixão é imunda em relação ao amor? Porque a paixão que rasteja é imunda?” Essas são relações que têm sido articuladas e assimiladas devagar ao longo dos séculos. “É nessa epifania que G.H. entra na sua solidão e acaba engolida pelo quarto da empregada. Nós estamos diante do fim de uma era, de uma natureza, de uma decadência total desses valores patriarcais. A sociedade é diversa, múltipla, ela é trans. Isso tem a ver com o próprio género literário da Clarice, que começa como um diário em movimento, atravessando várias chaves dramáticas, vários géneros dramáticos, do suspense ao horror. Chaves que a atriz tem de ir construindo”.
Luiz Fernando defende mais o lado existencialista da obra de Lispector, do que uma eventual dimensão feminista. Até por entender que a autora se transcende, num certo humanismo existencialista. E “mesmo tratando-se de uma descendente de judeus, este é o texto de um herege. Derrubando tudo, derruba até a ideia de Deus”. Assim invocando os ditames canónicos da cultura: “Ela apresenta-nos a divisão do mundo entre oprimidos e opressores, limpos e sujos. Mas essa divisão foi inventada. O filme é positivo, que que você se liberte. Quer que no final você vá dançar. O filme exige mais que o livro. No livro a imanência não existe. Mas na sala sim. Estou reivindicando a palavra como um elemento estrutural da linguagem cinematográfica. Lado a lado com as imagens”.
Sim, A Paixão Segundo G.H. é um filme contra corrente. Um “anti-filme”, como lhe chama Luiz, que nos olha nos olhos e cria um espaço intimidade que trespassa a tela de cinema. É então essa a experiência da paixão.