Miguel e a Janela de Livros
Retiro-o da prateleira e passo a mão pelo couro enrugado da capa, como se as suas rugas me pudessem denunciar as suas vivências. Cem anos. Este livro tem 100 anos. A quem terá pertencido? Terá sido uma oferta? A quantas gerações terá sobrevivido? Abro devagarinho a velha edição de “O Primo Basílio” (Eça de Queirós), mas a única resposta é um ligeiro estalar das páginas, com a sua pele cor de amêndoa. Pele. Sorrio, enquanto recordo as manhãs e tardes a visitar alfarrabistas no Porto e uma passagem que escrevi na reportagem. “O velho bibliófilo que folheia páginas como quem acaricia a pele de uma mulher”. Não há qualquer vinco ou aspereza nestas páginas. É difícil acreditar que tens 100 anos. Quantas velas arderam na tua companhia? Com quantos olhares travaste amizade? Que sensações despertaste? As rugas da tua capa, que tão dedicadamente te protegeu de todas as tempestades do tempo, não me respondem. Devolvo-te à estante e olho em redor. És único e, no entanto, há aqui milhares como tu. Tantas prateleiras, tantas perguntas, tantas rugas caladas, tantos anos. E tão poucos dias. Daqui a 11, as portas deste sítio fecham-se para sempre.
Tomo I
Foi no Verão de 1995 que Miguel de Carvalho tomou a decisão. Estava farto de ser engenheiro geológico. Decidiu largar a profissão, a segurança do fim-do-mês, o quotidiano aborrecido. Sentou-se, bebeu uma cerveja e rescreveu as suas prioridades. A geologia ia passar a ser um hobby. Os livros, até aí circunscritos aos fins-de-semana, iam passar a ser a sua vida.
Entusiasmado, percorreu essa estrada menos percorrida rumo a Coimbra e transformou um antigo escritório numa livraria. O negócio cresceu, os livros acumulavam-se. Em 1998, carrega-os às costas. Outra rua, outro primeiro-andar, mas com quatro salas. Dezasseis paredes para rechear com livros. Desígnio ou consequência que Miguel não demora muito a atingir. Pelo meio, tira um mestrado em Cartografia Geológica.
Tomo II
A atividade corria bem, mas Miguel ambicionava mais. “Sonhava criar um espaço de tertúlia, onde as pessoas pudessem não apenas ver livros, mas reunirem-se, encontrarem-se em torno dos livros”. Havia um espaço que considerava perfeito para esse desígnio, um edifício do século XIX com três andares, na baixa da cidade. “Namorei-o durante tanto tampo”, recorda Miguel, com nostalgia. Um namoro platónico, pois o edifício esteve sempre comprometido, primeiro com o Jazz ao Centro e depois com O Principezinho, uma loja que fazia trabalhos gráficos com papel reciclado.
O desencontro durou 13 longos anos. Um dia, ao passar nessa rua de sempre, encontrou-o vazio e com um papel na montra com um número de telefone. “Liguei, conversei e pronto”.
Na inauguração, houve um concerto de guitarra portuguesa. Os músicos, os irmãos Aroso, recusavam-se a actuar em Coimbra por “motivos pessoais”. “Abriram uma exceção por amizade”, confidencia Miguel. Seguiram-se muitos outros eventos. Peças de teatro, ciclos e festivais de poesia, lançamentos de livros, exposições de pintura e muitas, incontáveis tertúlias animadas que por vezes se prolongavam pela madrugada. Algumas surgiam de forma espontânea, especialmente nas noites de verão. “O edifício é fresco e particularmente aprazível nessa altura”.
Miguel encheu a livraria de multiculturalidade. Antiguidades, peças de arte, máscaras indígenas, artefactos arqueológicos. Visitar a livraria Miguel de Carvalho é uma aventura. Sentir o ranger do soalho de madeira antiga e impecavelmente envernizada, explorar as suas prateleiras infinitas, respirar o cheiro a sapiência dos manuscritos, apreciar cada detalhe das peças exóticas, tudo isso desperta-nos uma espécie de fascínio aventureiro. Faz lembrar um armazém dos anos 40, onde um arqueólogo guarda os tesouros que obtém nas suas expedições. O paralelismo não é assim tão rebuscado. Miguel parte muitas vezes em busca de tesouros. Guarda-os todos cá.
Tomo III
Anoiteceres enublados e chaves pesadas que destrancam mansões antigas e decrépitas com bibliotecas misteriosas lá dentro. “Esqueça lá isso”. Miguel desmistifica-me de imediato. “Só compro livros em bom estado de conservação e nesse tipo de sítios eles estariam todos estragados”. Diverte-se a contemplar a oscilação da centelha no meu olhar e ateia-a de seguida: “Mas já visitei solares seculares, com gárgulas nos telhados, figuras antropomórficas esculpidas nos tetos e sótãos trancados há décadas.” Não é incomum Miguel ser a primeira pessoa a entrar num compartimento selado há dezenas de anos. Muitas vezes são heranças que ficam congeladas no tempo. Miguel partilha a emoção que sente nesses momentos, a sedutora incerteza antes de rodar o trinco, o alvoroço da busca, o entusiamo do achado. Essas expedições em busca de tesouros apaixonam-no. E são tantos os que já encontrou.
Tomo IV
“Nós chamamos-lhes princeps, na gíria alfarrabista”, informa Miguel. É essa a designação das primeiras edições, “as raridades”.
Miguel já perdeu a conta às que descobriu nos seus 23 anos enquanto livreiro.
Edições princeps de “O Crime do Padre Amaro” (1875), de Eça de Queirós, “Amor de Perdição” (1862), de Camilo Castelo Branco ou “Mensagem” (1934), de Fernando Pessoa, assinado pelo próprio, um ano antes de morrer. Publicações raras, como as vinte páginas satíricas de “K4, O Quadrado Azul” (1917), de Almada Negreiros ou o primeiro e único número da revista “Portugal Futurista” (1917), com textos de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Álvaro de Campos, Mário Sá-Carneiro e Almada Negreiros e cuja esmagadora tiragem foi apreendida pela polícia devido ao conteúdo subversivo. A publicação contém ainda quatro reproduções de pinturas de Santa-Rita Pintor que sobreviveram ao seu derradeiro desejo das suas obras serem queimadas após a sua morte.
Nesta livraria também já esteve um dos únicos três exemplares de “A Infanta Capelista” (1872), de Camilo Castelo Branco (Pedro II, Imperador do Brasil, pediu a Camilo para não publicar a obra por retratar a vida de um membro da família imperial brasileira), ou a edição princeps de “Bicos de Gaz” (1854), do mesmo autor. “Não se via um exemplar deste livro desde os anos 60”, afirma Miguel.
Por vezes, encontram-se livros por identificar, que mais tarde se revelam autênticas joias. Miguel relembra uma tarde, nas Caldas da Rainha, quando encontrou um manuscrito medieval entre o espólio de um colecionador. “Nos séculos XV e XVI era muito comum usarem um pergaminho antigo aleatório para encadernar manuscritos”, explica Miguel. Uma prática que dificulta a identificação genuína das obras. Era o caso, mas Miguel comprou-a na mesma. “Há livros que falam connosco, dão-nos pequenos sinais, indescritíveis, que há lá algo de especial, que merece uma pesquisa aprofundada”. Miguel seguiu a sua intuição e, com a colaboração de um paleógrafo, debruçou-se sobre o que tinha em mãos. Descobriu ser uma das “Siete Partidas”, um documento jurídico redigido pelo Rei Afonso X de Castela no século XIII, uma das obras jurídicas mais importantes da idade média. Inicialmente tinha sido intitulado “Libro de las Leyes”, mas ganhou a presente dominação devido às sete secções que o compunham. Miguel tinha uma delas nas suas mãos. “Veio até um especialista americano em paleografia de propósito para o autentificar”, relembra.
Numa outra situação, desta vez em Coimbra, voltou a ouvir a intuição enquanto perscrutava uma biblioteca particular. Mais uma negociação, mais um manuscrito enigmático. Descobriu ser um cancioneiro manuscrito do século XVI, com composições poéticas inéditas de Camões e Gil Vicente. “Foi comprado por um professor universitário e vai ser publicado pela Universidade de Coimbra”, refere.
Qual a secção da livraria onde se guardam essas preciosidades? Miguel sorri com a questão. “Esses livros não costumam ficar muito tempo por cá. Geralmente, basta um telefonema e estão vendidos”. Rebate a minha curiosidade em relação a valores. “É sempre muito subjetivo”, elucida. “100 pode ser muito, 10 mil pode ser pouco”.
Tomo V
– Miguel, tens Mendes Correia?
A voz emerge do rés-do-chão. Miguel reconhece-a.
– “Da Raça e do Espírito”?
– Sim.
– Tenho.
Miguel levanta-se e dirige-se a um corredor exíguo ladeado por livros, de onde retira, de forma imediata, um exemplar. Tem 40 mil volumes cá dentro, mas sabe sempre onde está o que procura. Entrega a obra de 1940 do antropólogo português ao Lourenço, que a fica a admirar, compenetrado.
“Já vem cá há muitos anos”, refere. “Cada cliente tem o seu mundo, que eu vou conhecendo”. Miguel tem muitos clientes assim. Quando explora uma biblioteca, faz logo uma seleção. “Estes são para X, aqueles para Y”.
Desde cedo, começou a aperceber-se que os seus clientes não vinham apenas em busca de livros. “Queriam também partilhar as suas visões, as suas experiências, as suas histórias, os seus problemas”. Muitas vezes, a livraria Miguel Carvalho transforma-se em consultório emocional, sentimental, matrimonial. Miguel nunca nega uma palavra, um ombro, uma sugestão.
Relembra o dia em que entrou uma senhora que queria oferecer um livro a alguém que sabia ser seu cliente assíduo. “ Pretendia um livro que ele desejasse, particularmente”. E Miguel conhecia bem os seus desejos literários. Fez algumas sugestões e a senhora acatou uma. Saiu com o livro nas mãos e um sorriso nos lábios. Mais tarde, soube que o gesto tinha despoletado uma relação romântica entre ambos.
Também já teve de lidar com situações caricatas. Miguel tem muitos clientes que são consumidores compulsivos de livros, o que por vezes gera alguns atritos domésticos. “Por questões financeiras ou até por mera falta de espaço”. Recorda, vividamente, o dia em que um desses clientes lhe comprou duas sacas cheias de livros, mas pediu se as podia deixar na livraria e se o Miguel as podia levar à sua casa, num dia e horário estrategicamente delineado para coincidir com a ausência da esposa. Miguel assim fez. Tocou à campainha, entregou os sacos ao cliente e deixou-o imerso na próxima etapa do seu dilema. Onde encaixar os livros em casa de forma à esposa não dar conta que tinham sido recentemente adquiridos.
O alfarrabista ergue o rosto e sorri, abstraído noutras recordações não partilhadas. Nesta casa, há centena e meia de clientes que já ultrapassaram a fronteira e têm carimbada a palavra amigo no passaporte que os trás cá.
– Venho buscá-lo no final do mês.
– Combinado! Até amanhã, Lourenço.
Tomo VI
Em 2014, Miguel deixa de apenas comercializar livros. Passa a editá-los. Lança a editora DEBOUT SUR L”OEUF, cuja epíteto é inspirado num verso de André Breton, poeta surrealista francês do século XX. Edita dezenas de obras, sempre relacionadas, direta ou indiretamente, com a poesia. “Mais uma vez, fruto das relações que se vão criando aqui, dos autores que passam por cá e cuja obra vou conhecendo”, refere Miguel. Desempenha essa função com a mesma meticulosidade apaixonada com que gere a livraria. Percorre armazéns em busca do melhor papel para cada livro, vai à tipografia assistir aos partos e examina o primeiro espécimen em busca de imperfeições. “Sou um operário do papel”.
A paixão pela geologia continua acesa. Miguel está presentemente a tirar um doutoramento em cartografia e paleontologia.
Tomo VII
A mala do Volvo está quase cheia. “Ainda cabe mais um”. Miguel sobe ao primeiro andar e desce com um saco de hipermercado cheio de livros. Não é mais uma expedição em busca e recolha de tesouros. É uma transladação. “Um terço do meu espólio já seguiu”, afirma. Olha para trás, observa a montra da sua livraria durante alguns segundos e baixa o rosto, num gesto com pronúncio de despedida. “Apaixonei-me aqui em Coimbra por uma senhora”. Esboça um ligeiro sorriso. “Chamava-se cultura”. O sorriso esbate-se. “Mas apareceu um cancro nesta Baixa, levou-me essa senhora e fiquei viúvo”.
Miguel revela-se desiludido com a política cultural da cidade. “A Baixa de Coimbra está a definhar e o comércio tradicional está a degradar-se cada vez mais. A minha é apenas mais uma casa a fechar”.
O destino do carro atolado de livros é a Figueira da Foz, onde Miguel vai abrir outra porta, embora com um horário reduzido de abertura. Vai também abrir uma janela, essa sim, permanente. “Vou centrar a minha atividade no negócio online”. Uma livraria eletrónica (www.livro-antigo.com), aberta para o mundo e dinamizada nas redes sociais. “Ainda hoje um senhor viu na minha janela online dois livros de poesia que já estão no correio, a caminho de uma aldeia perto de Pinhel”.
Miguel vai também investir mais tempo nas expedições de Norte a Sul em busca dos tesouros. Uma atividade pela qual nunca perde o entusiasmo.
Desce o vidro do automóvel, projeta a cabeça para fora, indiferente aos pingos de chuva que se abatem sobre esta Baixa cinzenta e dirige o olhar à livraria. “Havia aqui muita vida”.
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O alfarrabista Miguel de Carvalho, no âmbito de uma iniciativa e parceria desenvolvida com a Comunidade Cultura e Arte e com o Crónicas da Madrugada, vai seleccionar seis edições antigas de livros que vamos oferecer nos próximos seis meses. Uma relíquia literária por mês.
As suas escolhas serão contextualizadas em cada edição desse passatempo.
No dia 23 de Abril celebra-se o Dia Mundial do Livro. No entanto, entendemos que as efemérides, especialmente as de índole cultural, são quando nós queremos. Logo, vamos antecipá-la um mês. A partir desta sexta-feira, 23 de Março, damos início a este ciclo de passatempos literários, que será estreado com uma gema. Uma primeira edição de um grande nome da literatura portuguesa.
Ainda embebidos nesse estado de espontaneidade subversiva das datas pré-estabelecidas, informamos que, de hoje – Dia Mundial da Poesia – a uma semana, iremos oferecer um livro de poesia editado por Miguel de Carvalho, na sua editora DEBOUT SUR L”OEUF. Esse livro tem uma particularidade muito especial, mas isso é para descobrir daqui a uma semana.
6 + 1 tesouros literários. Estão preparados para os tentar resgatar para as vossas prateleiras?
Texto e imagens: Victor Melo, autor do Crónicas da Madrugada