Entrevista. Wladimir Kaminer: “Putin vive alimentado por uma elite, milhares de famílias que são os ‘donos disto tudo’ e que gerem todos os negócios numa economia assente na exportação”
O escritor e cronista de origem russa Wladimir Kaminer lamenta que a Rússia nunca tenha experimentado uma democracia consolidada, preferindo reprimir opositores e agentes criativos, e ficado como “uma galinha sem cabeça” que, apesar disso, continua a correr.
Wladimir Kaminer nasceu há 56 anos em Moscovo e foi lá que cresceu, mas radicou-se em Berlim há mais de três décadas, onde se ligou a projetos de teatro e celebrizou no Cafe Burger as noites de ‘Russendisko’, que deu o título a um dos seus ‘best-sellers’ (editado em Portugal), tornando-se também cronista em publicações de referência na Alemanha, nas quais se assumiu como um fervoroso crítico do país natal.
Em entrevista à Lusa, o autor, que participa no debate amanhã (dia 10) em Lisboa “O charme discreto da ditadura: o que leva as pessoas a glorificar ditadores?”, promovido pelo Instituto Goethe, lamenta que a Rússia nunca tenha tido a oportunidade de ter ciclos de alternância pacífica no poder, o que a ciência política considera ser uma das bases para uma democracia consolidada.
“Os russos conseguiram um bem-estar económico como nunca devido aos preços altos do petróleo”, começa por dizer, e condescendem com a mão de ferro do líder do Kremlin, Vladimir Putin, “porque as pessoas não vivem na política, vivem na economia e querem salários decentes, escolas boas para os seus filhos e um sistema de saúde funcional”.
Kaminer chama a atenção para o grande apoio de que Putin desfruta entre mulheres acima dos 50 anos, que simpatizam com “uma imagem de austeridade, humildade de contenção e autocontrolo” de um homem que “não grita, não faz grandes dramas e que parece ser eterno”.
Apesar do seu regime autocrático, considera que Putin não é comparável ao ditador soviético Joseph Estaline – que em 2008 perdeu para o herói medieval Alexander Nevsky, por apenas cinco mil votos, entre uma participação de cerca de cinco milhões, a vitória no concurso “Os melhores de nós” da televisão Rossiya, indicando uma grande popularidade, à semelhança do que acontecera um ano antes num programa similar com Oliveira Salazar em Portugal.
Estaline, segundo o escritor, ainda é recordado pelo seu papel na libertação da União Soviética da invasão nazi na II Guerra Mundial, e, mesmo que tenha massacrado milhões entre o seu próprio povo, “com o tempo as pessoas tendem a esquecer as coisas más e a manter na memória as boas”, e o mesmo se passará com Salazar e as décadas do Estado de Novo, embora deixando entre o seu legado um dos países mais atrasados da Europa.
Já Putin, tem conquistado território nas regiões vizinhas desde que ascendeu à presidência em 2000 e, há dois anos, invadiu a Ucrânia, provocando uma crise sem precedentes na Europa nas últimas décadas com a sua doutrina expansionista e fervor nacionalista, “mas ainda não ganhou nenhuma guerra de forma inequívoca”.
O escritor refere que existe um grande interesse na Rússia pela história recente de Portugal, com várias obras editadas sobre o período da ditadura e transição para a democracia, o que poderá ser explicado pela identificação com “uma certa ideia de exclusividade do tempo do Estado Novo”, de um país que “não pertence exatamente à Europa, mas uma nação especial, quase uma espécie de Atlântida, que tem o seu caminho próprio”, tal como Putin propaga.
Hoje Portugal, afirma, enquadra-se porém no quadro de uma democracia enraizada e resiliente, que lhe permite acomodar no parlamento uma “deriva para a extrema-direita”, como aconteceu nas últimas legislativas com a votação expressiva no Chega. E tem esperança de que o mesmo se passe noutros países europeus e, em concreto, na Alemanha, onde se assiste a uma grande subida do partido ultrarradical Alternativa para a Alemanha (AfD).
Quanto à Rússia, Putin tem conseguido criar uma perceção de proteção da população e do país e “não vive num vácuo”, tratando-se de um regime alimentado por uma “elite, umas milhares de famílias que são os ‘donos disto tudo’ e que gerem todos os negócios numa economia assente na exportação”.
Nesse sentido, defende que a guerra na Ucrânia “está a ser financiada pelo Ocidente”, não se tratando sequer de um assunto existencial para a maioria dos russos, “porque não têm bombas a cair sobre as suas cabeças”, e “este cenário só mudará se começarem a sentir que o regime não corresponde às suas perspetivas de bem-estar”.
O próprio isolamento a que a Rússia estará sujeita devido às sanções em resposta à invasão da Ucrânia e ao encerramento de serviços e presença de marcas ocidentais na Rússia não passa, de acordo com Kaminer, de uma invenção, na medida em que, por exemplo, a Coca-Cola que se bebe no país é proveniente do Irão, o acesso à Internet não foi atingido e os russos veem filmes de Hollywood antes mesmo da sua estreia.
Outra coisa é a produção artística, que diz se ter esvaziado quando a cultura russa abandonou o país e os escritores, autores de ‘best sellers’ e poetas de altíssimo gabarito, músicos e filósofos emigraram, estão todos no ocidente, e no seu lugar ficou apenas “gente sem qualidade nem talento a repetir chavões” do Kremlin.
“É um corpo sem cabeça e pensava que um corpo sem cabeça não consegue viver”, comenta, prosseguindo a metáfora: “Como uma galinha com a cabeça cortada e que continua a correr e a cacarejar e a produzir sons”.
O autor, que atualmente se vê mais como alemão, é igualmente ‘persona non grata’ na Rússia desde que escreveu uma crónica no semanário alemão Der Spiegel sobre a anexação russa da Crimeia em 2014, e não visita o país desde então porque não quer acabar na Sibéria.
Mas acha que “é uma ilusão pensar-se, num mundo com tanta informação disponível e tão transparente como o de hoje, que impedir alguém de por os pés num país vai impedir de se saber o que se passa lá dentro”. E a distância, alerta, “por vezes, até permite ver melhor”.
Em resultado desta fuga de talentos, Kaminer observa uma cultura na diáspora russa de uma qualidade, intensidade e vivacidade nunca antes vistas, num movimento intelectual que “deveria orgulhar o senhor Lavrov”, ironizando com uma declaração em janeiro do chefe da diplomacia russa, ao assinalar “uma certa purificação da sociedade”, na qual algumas pessoas “que não sentiam afinidade com a Rússia, com a história ou cultura russa” abandonaram o país ou “reconsideraram a sua posição”.
O ministro dos Negócios Estrangeiros russo “teria inveja” de tantos convites que o autor diz receber para eventos culturais em vários países europeus, apontando ainda o caso do romancista russo de origem georgiana Boris Akunin, um dos autores contemporâneos mais lidos na Rússia, e exilado em Londres desde que se opôs à anexação da Crimeia, acabando na lista de “agente estrangeiro” e de “terroristas e extremistas” de Moscovo após criticar a invasão da Ucrânia e chamar ditador a Putin: “No lugar de Lavrov, teria cuidado com os livros que tem na sua coleção”, recomenda Kaminer.