Entrevista. Patrícia Reis: “Não há nada que não aconteça a Maria Teresa Horta. É censurada, tem um inimigo dentro do regime, é espancada na rua”

por Magda Cruz,    17 Abril, 2024
Entrevista. Patrícia Reis: “Não há nada que não aconteça a Maria Teresa Horta. É censurada, tem um inimigo dentro do regime, é espancada na rua”
Patrícia Reis, autora da biografia “A Desobediente”

O mais recente desafio da escritora Patrícia Reis começou em 2019 e termina com a publicação da biografia de Maria Teresa Horta, a que dá o nome “A desobediente”. A jornalista dá-nos a conhecer esta mulher que fez parte das Três Marias, por que atribulações passou durante a ditadura e que obra deixa.

A Teresinha, como lhe chama, foi censurada, ganhou inimigos dentro do regime, foi espancada por escrever poesia e sofreu às mãos do primeiro marido. São alguns episódios da vida de Teresa, contados agora num livro da Editora Contraponto. Neste episódio do Ponto Final, Parágrafo há tempo para falar de livros de ficção científica e clássicos portugueses. 

Magda Cruz: Porque é que nos interessa ler sobre a vida dos outros?

Patrícia Reis: Porque somos todos uns voyeuristas, para começar. (risos) Em Portugal, nós somos tão cuscos, até acho estranho que as biografias não sejam um género literário mais amado, mais lido. Nós gostamos sempre de perceber o que está atrás da vida da pessoa. O Vergílio Ferreira tem uma frase de que eu gosto muito, que cito muitas vezes, porque eu acho que faz muito sentido, que é: “Um livro é um biombo atrás do qual a gente se despe”. E eu acho que se tu fores procurar a vida de alguém, consegues espreitar um bocadinho desse biombo, o que é que se passa aí atrás. E as biografias têm esse fascínio de se perceber a outra dimensão de uma pessoa que tem uma carreira pública, seja em que área for. No caso da Maria Teresa, tanto no Jornalismo como na Literatura, mas também no ativismo porque a Teresa é feminista ativa.

MC: E sempre o disse. 

PR: E sempre o disse e sempre foi. Ficas com uma outra noção, não é? E eu acho que também que ajuda a entender a obra, da Teresa neste caso, de uma outra forma. Acho que tu consegues perceber que a Teresa expôs a vida dela toda na obra dela e perceber porque é que tomou determinadas opções. 

MC: Isso é na dimensão da leitura. Na dimensão da escrita, o que é que há na biografia, para ti, para já teres escrito três. Com esta, quatro? De Vasco Santana, de Maria Antónia Palla, de Simone de Oliveira e agora de Maria Teresa Horta)

PR: Há um enorme sentido de sacrifício, há uma autoestima muito em baixo (risos) e há a mania de que o consigo fazer, apesar de ser um trabalho insano. Mas são coisas diferentes. 

MC: É difícil escrever uma biografia, mas depois regressas. 

PR: É, mas esta é a última que eu vou fazer. Está publicado. Eu digo, sempre que alguém me entrevista sobre “A Desobediente”: “É a última. Não farei outra”. A não ser que seja a do Cristiano Ronaldo com um contrato milionário e um plano de internacionalização. 

MC: Posso arranjar isso. 

Patrícia Reis, autora da biografia “A Desobediente”, com Magda Cruz, autora do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, na livraria Stuff Out

PR: Do ponto de vista financeiro, [escrever uma biografia] é um trabalho insano e que não justifica. Tu não vai ganhar dinheiro suficiente para compensar quatro anos de trabalho tão intenso. E de uma responsabilidade tão grande, sobretudo, tratando-se da Maria Teresa Horta e por estar viva. É uma responsabilidade imensa. 

MC: Confundes-te com ela, a certo ponto?

PR: Às vezes, sim, durante a escrita. Houve ali processos de identificação muito grandes. Há coisas na Teresa que eu percebo muito bem. A sensação de carência, a sensação de abandono, a traição, o gerir mal (ou bem) os conflitos, enfim. Há várias coisas que eu acho que qualquer pessoa se pode identificar com ela. E há muitas mulheres que se vão, claramente, identificar com ela. Agora, repara: todas as biografias são muito diferentes. O Vasco Santana já cá não estava e era uma biografia muito curta. Foi um convite da Inês Pedrosa. E para te ser muito sincera, não voltei a ler. Portanto, recordo-me muito pouquíssimo. Sei que deu muito trabalho de pesquisa, mas recordo muito pouco esse trabalho ter sido duro. Não tenho essa memória. A [biografia da] Simone de Oliveira não foi nada duro. Foi bastante divertido. Lembro-me de rirmos e chorarmos e comermos chocolates e sopa. E passarmos horas infinitas naquela casinha muito pequenina, a que ela chamava “o meu pombal”. Era uma biografia assente na voz dela. Implicou, obviamente pesquisa, e aí a minha costela de jornalista beneficia-me muito. Mas foi diferente. No caso da Maria Antónia Palla, é uma biografia a quatro mãos, sendo que é sobre a vida dela. Portanto, eu tenho de respeitar o ritmo dela, a forma dela, a narrativa dela, o vocabulário dela… E ajudar a construir, a pesquisar e a parte mais, digamos, chata da recolha de informação. Mas não é um trabalho exclusivamente meu.

MC: É dividido.

PR: Na Teresa, a razão pela qual eu acho maravilhoso que o Rui Couceiro, o editor da Contraponto, tenha criado esta coleção de biografias é também por dar espaço e querer que os autores sejam escritores.

MC: É essa a premissa interessante da coleção.

PR: Essa premissa dá-lhe uma dimensão literária muito… Para mim, foi brutalmente confortável, percebes? Porque era a vida da Teresa, mas eu podia ser um bocadinho eu. A escrita podia ser um bocadinho a minha escrita. Sem deturpar, sem inventar, sem nada porque há um lado de verdade que importa manter.

Patrícia Reis, biógrafa de Maria Teresa Horta, trabalhou desde 2019 na biografia

MC: E com a Teresa tiveste uma grande conversa ou foi sempre uma entrevista?

PR: Não, eu nunca tive entrevistas com a Teresa.

MC: Foram várias.

PR: Centenas de conversas, centenas. Ainda hoje tenho conversas com a Teresa. E é um privilégio.

MC: Como é quando ligas? “Olá, Teresinha”?

PR: “Então, Teresinha. Como estamos?” É assim que começa.

MC: E como é que ela responde, de lá?

PR: “Ah, minha querida…” E depois na, na, na…

MC: É uma relação que começa em 2019, quando começas o trabalho? Não, mais cedo? Quando é que a conheces?

PR: Não, não. Muito anterior. Eu conhecia a Teresa. Quer dizer… Era difícil eu estar nos jornais… Eu comecei no Jornalismo em 1988, o que significa que já cá ando há muitos anos a virar frangos. Mas, a Teresa era incontornável nessa altura. A Teresa era uma grande jornalista e, além disso, foi chefe de redação da revista “Mulheres”. Todas nós, jornalistas, liamos a revista “Mulheres”. Era impossível não ler. Era uma referência. Eu, depois, coincidi com ela na “Marie Claire”. Ela fazia o dossiê “Mulheres”, na “Marie Claire”, a convite da diretora, que era a Inês Pedrosa. Mas não desenvolvemos assim uma amizade. Era a Teresa, não é? Aquele ícone. Estava lá no sítio dela, eu estava aqui no meu. (risos)

MC: Já era bom poder dizer que partilhavam o mesmo espaço.

PR: Sim, sim. E ela era colaboradora, portanto não estava na redação. Ela chegava, entregava o seu material, discutia matérias aqui e ali, contava uma ou outra história e ia embora. Sendo que o chefe de redação, até certa altura, era o marido dela. Depois ele sai, ela vem. Enfim. Mas para dizer que não tinha uma relação com ela. Tinha esta admiração, e este respeito imenso, e esta ideia de que ela foi pioneira em tanto, que deu espaço a mulheres como tu, como eu, como tantas outras. E depois, um dia, não sei se há 24 se há 25 anos, num pequeno-almoço num evento literário das Correntes d’Escritas, mais uma vez a Inês Pedrosa disse-me “Vamos nos sentar com a Teresa” e, a partir daqui, houve um clique de empatia, de sintonia, de compreensão. Foi muito fácil a minha relação com a Teresa.

MC: E, depois, no momento de escrever esta biografia, decides o momento de abertura. São dois episódios muito fortes da vida da Maria Teresa.

PR: O momento de abertura é a memória inaugural da Teresa. A primeira grande memória da Teresa é essa: da mãe pegar nela e a pendurar, pelos pés, à janela. E ela ver a rua cá em baixo. E é um momento em que ela percebe que a mãe é, nas suas diferentes dimensões, (a mãe sofria com uma depressão pós-parto violentíssima), e pode ser também a Mãe-Perigo. E esse é um momento de vislumbre de uma mãe que ela não contava. E passa a ser muito vigilante do comportamento da mãe.

MC: Mesmo assim, acaba por a perdoar, em vários momentos da vida.

PR: Ela toma as dores da mãe, ela toma a defesa da mãe. Eu acho que essa defesa da mãe é o território fundador do seu feminismo. Que é poder dizer “Não, a minha mãe pode ter uma vida em liberdade. A minha mãe pode casar com quem quiser.”

MC: Mesmo quando a abandona. Ela sente um abandono.

PR: Ela sente um abandono.

Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”:

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