Exposição sobre a diáspora africana em Portugal, desde 1975, pretende “contrariar o peso dos arquivos oficiais e a narrativa do período colonial”
Uma exposição que reúne fotografias da autorrepresentação da diáspora africana em Portugal desde 1975, pretende “contrariar o peso dos arquivos oficiais e a narrativa do período colonial” e vai ser inaugurada no sábado, no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa.
O espaço não foi escolhido por acaso, indicaram as duas curadoras da mostra “Álbuns de Família. Fotografias da diáspora africana na Grande Lisboa (1975-hoje)”, Filipa Lowndes Vicente e Inocência Mata, que durante uma visita para jornalistas sublinharam a importância desta iniciativa para “dar voz à comunidade africana” em Portugal.
“O nosso objetivo é tornar visíveis as pessoas desse segmento da sociedade portuguesa, sempre visto como estrangeiro e imigrante, mas cuja grande parte já nasceu em Portugal ou vive aqui há mais de 50 anos, e faz parte da nação portuguesa”, sublinhou a investigadora Inocência Mata em declarações à agência Lusa.
A exposição temporária reúne “álbuns de família” com as imagens que os portugueses afrodescendentes e os africanos residentes registaram de si próprios e das suas comunidades desde 1975, data das independências dos países africanos de colonização portuguesa.
As curadoras consideraram que “seria uma forma de tornar visíveis estes rostos que têm contribuído para criar Portugal desde o 25 de Abril, não descurando também o passado”, disse a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de Literaturas, Artes e Culturas, doutorada em Estudos Pós-coloniais pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos.
Duas razões foram muito fortes para criar esta mostra, disse: “Comemoram-se os 50 anos do 25 de Abril e este é o último ano da Década Internacional dos Afrodescendentes [2015-2024], instituída pelas Nações Unidas para promover as ideias de reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Contudo, têm sido realizadas poucas iniciativas neste âmbito em Portugal, portanto teve pouca visibilidade”, lamentou a investigadora.
Para a exposição, as curadoras desafiaram nove artistas afrodescendentes e africanos com relações familiares e profissionais com Portugal para trabalharem a ideia de “Álbuns de Família”, desde cantores, artistas plásticos, escritores e fotógrafos, e também pediram a colaboração de pessoas anónimas para contribuírem com as suas fotografias pessoais.
“No coração da exposição estão as fotografias das pessoas desconhecidas, resultado da ideia de que todos nós temos histórias pessoais que se cruzam com a História nacional e internacional. As pessoas que queremos ver aqui representadas também fazem parte dessa narrativa de há 50 anos e do presente”, disse, por seu turno à Lusa a curadora Filipa Lowndes Vicente, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
A investigadora indicou que, ao longo de um ano de preparação, ambas pensaram a exposição como um espaço para dar voz, através da fotografia, a pessoas comuns da comunidade africana na Grande Lisboa.
“Sempre imaginámos esta exposição como uma forma de poder contrariar e desconstruir o arquivo colonial português, que é poderosíssimo. Os arquivos públicos oficiais, e os arquivos privados de muitos portugueses, estão repletos de fotografias de pessoas negras em situações coloniais, muitas vezes violentas, desiguais”, apontou Filipa Lowndes Vicente.
Recordou que a invenção da fotografia coincidiu com o colonialismo moderno dos séculos XIX e XX, “portanto esse arquivo [de fotografia documental e pessoal] é gigantesco, e está muito presente”.
“Com esta exposição queríamos mostrar o outro lado, mostrar pessoas que têm nome e têm voz, o que não acontece com as outras fotografias do período colonial, em que não está ninguém identificado”, observou a editora da obra “O Império da Visão: fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, lançada em 2014.
Filipa Lowndes Vicente disse ainda que a montagem do conteúdo da mostra “Álbuns de Família” “implicou muito trabalho colaborativo com pessoas que generosamente emprestaram as suas fotografias pessoais originais, e contaram histórias ligadas a essas imagens”.
No percurso, o visitante vai encontrar obras de artistas como Mónica de Miranda, uma das curadoras da representação de Portugal na Bienal de Arte de Veneza, inaugurada no sábado, do fotógrafo Adão Marcelino, assim como de António Pedro, proprietário da loja-estúdio fotográfico, criada em 1960, na Damaia, e que durante décadas fotografou afrodescendentes e africanos da comunidade residente local.
Retratos de mulheres, homens e crianças afrodescendentes ou africanas, famílias, amigos em convívio em discotecas em Lisboa cobrem as paredes da sala de exposições do Padrão dos Descobrimentos, um monumento que foi erguido pela primeira vez em 1940, de forma efémera, integrado na Exposição do Mundo Português, promovida pela ditadura do Estado Novo.
Foi em Lisboa e nas zonas limítrofes da capital que se instalou a grande maioria dos africanos vindos para Portugal nas últimas décadas e onde reside hoje a maioria da diáspora africana, oriunda de países que foram colónias portuguesas, nomeadamente Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
As curadoras recordaram que, desde 1975, quando se deu a maioria das independências das colónias portuguesas de África, o fluxo de pessoas que vieram de África para Portugal tem sido mais ou menos contínuo: “Uma grande parte dos afrodescendentes em Portugal já nasceu cá, e é portuguesa”.
A União Africana considera a diáspora como a sua sexta região, e predomina em países atlânticos e regiões ou que foram potências coloniais e agentes no tráfico de escravos – Portugal, Reino Unido, França, Bélgica, Alemanha, Itália, Estados Unidos da América, Caribe, Brasil – sendo “indissociável de um passado histórico de séculos de escravatura e colonialismo”, referiram ainda.