Entrevista. Hugo Gonçalves: “Interessa-me ir ao fundo da existência humana. A esta altura do campeonato, não tenho a mínima dúvida de que escrevo para entender o mundo”

por Magda Cruz,    30 Abril, 2024
Entrevista. Hugo Gonçalves: “Interessa-me ir ao fundo da existência humana. A esta altura do campeonato, não tenho a mínima dúvida de que escrevo para entender o mundo”

Escritor e guionista, Hugo Gonçalves tem posto o seu nome em vários géneros. Em pouco tempo, escreveu um romance de sucesso, uma série de proporções internacionais e um musical que toca todos. 

A propósito, sobretudo, do livro “Revolução”, neste episódio do podcast “Ponto Final Parágrafo”, falamos na semana dos 50 anos do 25 de abril, Liberdade e ditadura, sobre o seu processo de escrita e de livros vindouros. 

Nesta entrevista, Hugo Gonçalves, revela que o romance vai ser traduzido em Espanha, sendo que “há editoras interessadas no Brasil”: Outras revelações que faz? Diz que, enquanto leitor, gosta muito de ser agarrado pelos colarinhos. É o que nos faz com os seus livros.

Magda Cruz: Segues o conselho de Ricardo Walker, tua personagem em “Revolução”, e escreves com “os colhões, o coração e a cabeça”? 

Hugo Gonçalves: Espero que sim. Enquanto leitor, gosto muito de ser agarrado pelos colarinhos. Acho que o Kafka é que dizia isso sobre os livros que lia. Como tal, também gosto, enquanto escritor, de criar algo que tenha profundidade psicológica, obviamente, que tenha uma força de verdade, para que as pessoas se possam identificar — porque a Literatura é isso. É explorar esta experiência a um tempo maravilhosa e às vezes horrível de estar vivo. É aquilo de viajar no tempo e no espaço. Nós podemos ler um livro do século XVII ou um livro passado num lugar que nem sequer existe, inventado, e sentir que a nossa experiência tem ali um reflexo. Mas também, do ponto de vista emocional e racional, que faça pensar e que faça sentir. Enquanto escritor, sempre tive essa… Acho que é quase uma segunda natureza. Não é algo muito racional, mas escrever algo que tenha essa força, que…

MC: Eu acho que a palavra é “audácia”. Acho que escreves com audácia.

HG: É uma boa palavra, “com audácia”. E correndo riscos. 

MC: Desde as premissas. 

HG: Desde as premissas. O facto por exemplo… Às vezes as pessoas dizem-me “Os teus livros são muito diferentes”. E isso, para mim, é das coisas que gosto mais de ouvir (risos). Sinceramente. As pessoas dizem-no de uma forma elogiosa. É uma forma que resulta de uma certa surpresa. 

MC: Por exemplo, no “Deus Pátria Família”, há várias passagens sobre Salazar. Há até uma em que o retratas como um homem que se apaixona, que pensa em coisas mundanas e que põe os pés de molho enquanto lê a correspondência. Há depois o episódio quando o Presidente do Conselho vai ao jazigo dos pais. Eu acho que isso é escrever com audácia. Sentes que escreves como o Ricardo Walker dizia?

HG: Eu espero que sim. Quando estou a escrever, não estou sempre a pensar nisso. Como eu disse, é uma espécie de uma segunda natureza, como talvez um tenista quando está a meio de um jogo de alta competição, também não está constantemente a pensar como é que vai bater a bola. É uma segunda natureza. Mas isso tem de estar lá dentro. Tem de estar programado.

MC: O tenista deixa o pulso funcionar, tal como o escritor dá ao pulso.

HG: (risos) Sim. Na questão do Salazar, era uma coisa que me interessava, que era… A imagem de Salazar é um estereótipo. Às vezes, num espetro da política, demonizado pela sua tacanhez, pela forma como sentenciou Portugal a uma miséria existencial (não apenas material, de pobreza). Por outro lado, é visto como a figura messiânica e providencial que deixa os cofres cheios. Como ele próprio dizia: “Para a minha campa, hei de levar apenas o pó que tenho nos bolsos”. É naquele sentido de suposta honestidade, que no caso dele é possível que seja verdade. Acredito que não tivesse posto nada ao bolso. Acredito nisso. Mas deixou que outras pessoas, outras famílias…

MC: Acho que até escreves no “Revolução” que a ditadura é corrupção.

HG: Sim, sim. Esses é um dos pensamentos errados mais hilariantes, se não fossem trágicos: “ah, na ditadura não havia corrupção”. O funcionalismo público era profundamente corrupto, a economia era profundamente corrupta. Eram poucas as famílias que detinham monopólios. É não conhecer a História. No caso do Salazar, ou de qualquer outro personagem, interessa-me que elas sejam tridimensionais, que não sejam estereótipos. A menos que sejas um vilão do James Bond, ou que sejas um psicopata, todas as pessoas têm uma dimensão humana. E a mim interessa-me explorar isso. Aliás, explorar… Ainda agora o Jonathan Glazer, o realizador que fez o filme “Zona de Interesse”, um filme nomeado para um Óscar, que é sobre a vida do líder do campo [de extermínio] e ele só mostra a vida quase idílica daquela família alemã. Trabalha muito com a questão do som, do que se passa no campo. Há um contraste entre a corrupção e a paz, entre a maldade e a felicidade doméstica, que é comum, em maior ou menor escala, a todos nós.

Hugo Gonçalves, autor de “Revolução”, com Magda Cruz, autora do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, na livraria Stuff Out

MC: Salazar partilhava muito os momentos com a empregada.

HG: Com a Maria, a governanta. E isso interessa-me. Interessa-me ir ao fundo da existência humana. Há muito aquela dúvida: se os escritores escrevem para mudar o mundo ou para entender o mundo. Eu, a esta altura do campeonato, já passada a meia idade, não tenho a mínima dúvida de que escrevo para entender o mundo. Se, por acaso, algum livro meu puder despertar alguma consciência em quem lê sobre questões como a suspensão do pensamento crítico, o perigo das tiranias…melhor ainda. Mas eu não faço ativismo com os meus livros. Quero fazer Literatura.

MC: Pelo menos humor fazes. (risos) É uma característica da tua escrita é esse poder com o humor, em episódio frugais. Também tem que ver com o vocabulário.

HG: Eu espero que sim porque eu entendo a escrita e a Literatura como uma reprodução desta incumbência de estar vivo, e que utiliza a linguagem para isso. E como tal, o nosso dia é feito, também através da linguagem, mas não só, de momentos mais sérios e de momentos mais humorísticos; de momentos em que usamos uma linguagem mais coloquial, corriqueira, vulgar até, e momentos em que usamos uma linguagem mais erudita ou mais oficiosa. Nós estamos constantemente a mudar de registo e, como tal, eu acho que a Literatura deve espelhar isso. Eu sempre gostei muito de escritores que num momento tivessem um parágrafo soberbamente escrito e, a seguir, têm uma frase do dia-a-dia. Algo como “dar de frosques”, “Ala, que é Cardoso”, um palavrão bem metido.

MC: Que exemplo é que tens desses escritores?

HG: O António Lobo Antunes faz isso bem, especialmente na parte dos diálogos. O Philip Roth faz isso bem. O Junot Díaz, que é um escritor americano de origem dominicana, também faz isso muito bem. O José Cardoso Pires fazia isso muito bem também. A verdade é que há uma…não sei se é uma tradição, mas em Portugal não há muitos escritores que escrevam com humor.

MC: Pensam que a Literatura tem de ser uma coisa chata?

HG: Não sei o que eles pensam porque não conheço todos. E não estou a dizer isto de um ponto de vista crítico. Mas há esta ideia de a Literatura ser uma coisa sacrossanta e séria. E o humor é um instrumento narrativo como outro qualquer. Como as notas de rodapé, como o discurso direto, como as metáforas. E se ele está à minha disposição, porquê não usá-lo? A verdade é que durante o dia, fazemos piadas, ouvimos piadas, há situações inadvertidas que são resultado de humor, coincidências que são irónicas. Portanto, eu acho que isso faz parte da vida e, como tal, deve fazer parte dos livros.

Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”:

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