Um guião para as desigualdades territoriais urbanas
Ahmed Tobasi é o director do Freedom Theatre do campo de refugiados de Jenin na Palestina Ocupada, instituição nomeada para Premio Nobel da Paz 2024 pelo trabalho cultural e de criatividade artística num contexto de resistência.
Em 2016, Ahmed subia comigo, Bleu RC, Loreta e Wine a ladeira que dá para Riba Chada – a parte de cima do Bairro Santa Filomena. Chegados ao topo, remetemo-nos a um silêncio de palavras, acometidos pelo som do vento nos destroços: lembranças domésticas que rodopiam em remoinho teimando em não sair do Bairro.
Ahmed interrompe a contemplação e diz: “– Isto é como na nossa terra (Palestina ocupada)”, “– Aqui é o campo de refugiados e onde vivemos”, – “ali” – apontado para o condomínio da Vila Chã na Amadora- “São os colonos”.
A observação não era apenas estética. Chegar ao topo, a Riba Chada, foi o destino final de um percurso entre a Amadora e Santa Filomena onde percebeu a segregação espacial racial; a polícia de intervenção a fazer de fronteira na entrada do Bairro; conheceu um conjunto de moradores cujas casas foram destruídas sem alternativa habitacional; percebeu que muitos dos moradores, apesar de nascidos ali, não têm direito à cidadania portuguesa e; que uma das medidas de política pública do município foi aliciar alguns dos moradores a serem repatriados para Cabo Verde, um país que não é o deles. E claro, Ahmed também conheceu e observou muita resistência.
Há uns meses, um renomado comentador da nossa praça, daqueles que coleciona arquivos e usa-os para certeza de objectividades e subjectividades, dizia-se muito surpreendido por moradores das comunidades racializadas da periferia de Lisboa, manifestarem-se em Lisboa com bandeiras da Palestina. É uma proximidade óbvia e sem direito a grandes conspirações.
No mesmo ano dessa ida colectiva a Santa Filomena, chegava-me às mãos um exemplar de “Regressos Quase Perfeitos” de Maria José Lobo Antunes. O livro é uma etnografia da memória de guerra em Angola com depoimentos de soldados portugueses.
Algumas dessas memórias são sobre a política de “reagrupamento” das populações locais. Na égide de conquistar os seus corações para o lado português, a verdadeira estratégia era controlar as populações, evitando, principalmente, que aderissem ou apoiassem o inimigo.
Lê-se: “Com o reordenamento rural, comunidades inteiras foram deslocadas e dispersas por vários lugares. A violência do deslocamento da população está ausente do retrato oficial feito pela instituição militar, que o apresenta como vontade dos habitantes.” (p.129); ou ainda: “Embora o reagrupamento tenha resultado da acção das autoridades civis e militares portuguesas – uma acção que obrigou as populações aldeadas a abandonarem as formas tradicionais de subsistência –, a assistência alimentar é apresentada num tom paternalista que enfatiza a intenção de obrigar os autóctones a trabalhar” p.165.
A Maria José não sabe, mas enquanto passeava-me por essas páginas, a analogia com a alguns processos de realojamento na Área Metropolitana de Lisboa era evidente. À luz de uma política de habitação, deslocámos dezenas de milhares de pessoas para Bairros cuja localização e forma não escolheram. Longe dos seus trabalhos, sem equipamentos públicos, transportes ou espaços comerciais. Num território hostil e cercados pela polícia. Nos media, na política e na consciência de cada um, usamos o ónus das consequências desses factores para os acusar do seu insucesso.
Com as devidas proporções, recorro a estes exemplos por duas razões.
Em primeiro, porque os territórios urbanos pobres em Portugal, apesar das centenas de milhares pessoas que os habitam, são ainda uma realidade abstracta para grande parte da população, enviesada por um processo de continua desumanização. Em segunda ordem, para que se entenda que a organização do território é uma ferramenta política determinante.
Todo o discurso cada vez mais contemporâneo de recuo ao apoio das vidas dos mais empobrecidos do país; uma iniciativa da extrema-direita e dos herdeiros de Friedman, rapidamente capturada pelos partidos ao centro e do “arco da governabilidade”; é uma ficção sobre o retrato do que realmente o país fez e faz nessa área.
No relatório Society at a Glance de 2024 da OCDE, conseguimos perceber que as transferências públicas medidas em dinheiro para indivíduos em idade activa, no caso português, vai 25% para o quintil dos mais ricos e apenas um pouco menos de 15% para o quintil dos mais pobres. Apesar dos números serem por si chocantes, na medida em que o Estado português parece viver com as prioridades trocadas, ainda assim os números do relatório deste ano parecem estar influenciados por medidas públicas transitórias do Covid e de apoio às famílias contra a inflação, já que os valores de 2019 (do relatório anterior), apontam que essa distribuição é feita de 40% para os mais ricos e de 12% para os mais pobres.
Em países como a Finlândia, Holanda, Austrália, Dinamarca, Nova Zelândia e Dinamarca; as transferências para os mais pobres ficam acima dos 30% e para os mais ricos nunca ultrapassam os 15%.
Os números apontam para o enorme caminho político que ainda é necessário fazer, e para um campo de possibilidades, mesmo no contexto das democracias liberais, a que Portugal se recusa a aderir: combater as desigualdades, promover a equidade.
Uma grande parte da pobreza do país está territorializada e concentrada em partes de agregados urbanos, sejam bairros sociais ou em áreas deprimidas onde o recurso à habitação tornou-se mais barato para os milhares que nas últimas décadas procuraram as nossas cidades à procura de uma vida melhor.
Não há uma ignorância sobre as soluções para essa exclusão. Académicos, trabalhadores de política pública, moradores ou movimentos sociais (como o Vida Justa), têm apontado caminhos de como o fazer. Ainda que em cada sector seja necessária uma análise mais fina – caso a caso – arrisco a deixar algumas notas fundamentais:
Segurança – Nestes territórios não há policiamento, mas sim uma intervenção musculada denominada “acções de policiamento reforçado, com recurso a meios especiais de polícia”, com a denominação de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). A chegada desses meios operacionais a um território, muitas vezes diária, é semelhante à aplicação da lei marcial, sem que haja evidência estatística dessa necessidade. Deve-se acabar com as ZUS, e a despesa das mesmas deve ser canalizada para equipamentos e serviços desses territórios.
Habitação – Há muitas casas vazias nesses territórios e algumas ocupadas. As primeiras devem ser reabilitadas e disponibilizadas ao público a preços associados aos meios de vida de cada agregado, dando prioridade aos que já habitam nesses territórios em alojamentos sobrelotados (há muitos casos de habitações de várias gerações da mesma família no mesmo alojamento). No caso das ocupadas, deve-se legalizar a permanência de indivíduos ou famílias sem alternativa habitacional, que são a esmagadora maioria dos casos. Lembrar que muitas habitações construídas pelo estado já não têm condições de habitabilidade (problemas estruturais, humidade) e devem por isso ser reabilitadas. No caso das novas construções, negociar com os futuros moradores a forma, a gestão e a modalidade (o que não acontecido, por exemplo, no PRR), e enquadrá-las num contrato social mais vasto de habitação “pública” e não social.
Urbanismo, equipamentos e espaço público – Os territórios devem estar conectados com a malha urbana da cidade como parte do seu continuum. Devem ter espaços de recreio infantil adequados, campo de jogos e espaços de estar. No caso dos bairros de gestão pública, a norma é os espaços comerciais ficarem em bruto e inacessíveis aos moradores. Esses devem ser reabilitados e de acesso transparente para o exercício de actividades de economia comunitária ou para associações locais. Muitos bairros não têm se quer uma mercearia ou espaço para albergar associações de base local.
Cultura – As actividades culturais e artísticas que emanam destes territórios devem ter lugar nas programações das vereações culturais dos seus municípios e da respectiva Junta de Freguesia. Do mesmo modo, deve haver no território espaços que acolham e promovam a criação artística das suas pessoas e agentes, ora através da existência de espaços associativos ou especialmente dedicados para o efeito.
Transportes – O ordenamento do território expulsou muitos destes territórios da cidade e situou-os na periferia. Actualmente, nesses locais, os transportes começam tarde e acabam cedo, e muitas vezes são praticamente inexistentes ao fim de semana e feriados. É preciso conectar e acabar com os muros. Espaço e tempo fazem parte dessa equação e os transportes devem ter uma função pública. Devem ser regulares e de horário alargado, permitindo qualidade na deslocação para os empregos e para o ócio. Há locais na Grande Lisboa em que o tempo de deslocação entre o Bairro de Realojamento e a morada anterior dista em cerca de uma hora e quarenta (no mesmo concelho), isto claro, considerando o intervalo horário em que há transporte.
Educação – Pese a dedicação de muitos professores e outros agentes educativos, nestes territórios enquanto sistema, a escola assemelha-se a uma fortificação avançada no território. Os níveis de reprovação nessas escolas são assustadores. Ela deve estar aberta à comunidade, compreender e incorporar os seus valores e deve ter também no seu corpo docente figuras de relevo para a comunidade, com as quais também se sintam representadas. O ensino profissional não deve ser a solução para a desistência. Tem de haver os recursos para que os discentes possam cumprir o ensino regular, enquanto o ensino profissional deve ser o que é suposto ser desde o início: uma alternativa vocacional. O trabalho das escolas deve ser articulado com as demais actividades do território.
Crianças e jovens – Tendo em conta o perfil dos moradores em idade activa que habitam nos territórios mais empobrecidos, com longas jornadas de trabalho, em horários fora das nove às cinco, e tendo em conta também as suas habilitações académicas; deve haver espaços que recepcionem as crianças e jovens, que os apoiem nas actividades académicas em articulação com as escolas; e que sejam também espaços de activação pessoal e colectiva a vários níveis. Deve considerar-se também a existência de creches com horário alargado.
Ambiente e Ecologia – Sabemos que actualmente não existe equidade energética. Faz todo o sentido que neste campo, o estado invista nas populações com menores recursos financeiros ainda para mais, considerando que boa parte do parque habitacional onde vivem é público. Nesses locais devem-se criar comunidades energéticas através de, entre outros, a colocação de painéis solares nos telhados que permita aos moradores optarem, sempre que possível, pelo autoconsumo e não pela energia elétrica da rede. A propriedade pública dos edifícios também facilita – haja vontade política – o investimento no aproveitamento das águas pluviais para as necessidades de rega do espaço público e de abastecimento de hortas comunitárias.
Políticas públicas e acessos – A aplicação das políticas públicas, algumas já mencionadas e outras, devem ser feitas através da organização colectiva dos moradores. Seja em associações, entidades de base local, etc. Isso permite aproximar os recursos às necessidades, dinamizando também a economiaa local. As codificações de linguagem e burocráticas de acesso à política pública, bem como a organização financeira exigida (pagamentos tardios e em contra-factura), gerou um sistema inquinado que favorece a aplicação de políticas pública quase exclusivamente a partir de entidades que estão longe dos territórios.
Para alguns dos leitores, o que apresento é algo banal, inscrito nos pilares mais básicos do que é viver nesta sociedade. Mas não. O que descrevo como propostas não existe. Por vezes, de forma ad hoc, podemos encontrar um ou outro ingrediente num território específico, mas a norma é não acontecer.
Aos mais cépticos, diria que o verdadeiro custo para a nossa sociedade é estas condições não existirem.