Entrevista. Álvaro Filho: “As questões de imigração em Portugal sempre existiram, em maior ou menor proporção, elas agora só são mais visíveis”
“O mau selvagem”, do escritor brasileiro Álvaro Filho, é um romance policial que faz uma crítica social à forma como a comunidade brasileira é vista e tratada em Portugal, e com o qual o autor procurou fazer justiça aos imigrantes.
Partindo do mito do “Bom selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual o Homem nasce bom e é a sociedade que o corrompe, o autor pernambucano, jornalista e residente em Portugal há oito anos, faz uma releitura dessa teoria e apresenta o imigrante como um bom selvagem que chega a Portugal e tenta adaptar-se, obrigando-se a “engolir certos desaforos racistas e xenófobos em nome da sua segurança e da sua família”, disse, em entrevista à agência Lusa.
“Mas esse papel na dramaturgia social tem prazo de validade e com o passar do tempo esse bom selvagem, cada um à sua maneira, começa a se rebelar, pois percebe a sua importância, o seu papel na sociedade, e passa a impor-se e responder como pode. No meu caso, a resposta à minha transformação de bom para mau selvagem veio em forma de um livro”.
Álvaro Filho apenas “conhecia por alto” o conceito e só leu o “Contrato Social” na altura de escrever o livro: “Na verdade, comentava entre os familiares e amigos brasileiros – onde as clivagens entre brasileiros e portugueses são um tema recorrente – que para os portugueses os brasileiros e demais imigrantes não-europeus ainda eram vistos como selvagens, que precisavam ser civilizados, enquadrados numa espécie de ‘reload’ do processo colonial, uma colonização 2.0, mais discreta, disfarçada”.
O que este romance trata é essa condição do imigrante não-europeu em terra alheia, ou, como o autor diz, “visitante na casa de alguém”, centrando a trama numa histórica livraria lisboeta, que emprega um imigrante acabado de chegar, fugido da deriva de extrema-direita do governo no Brasil.
Nessa livraria, o protagonista é confrontado com situações e histórias de clientes que tratam de forma discriminatória os empregados brasileiros e chegam a rejeitar sugestões de livros de autores como Carlos Drummond de Andrade, porque não estão escritos em “português de verdade”.
É então que começa a ouvir relatos sobre um antigo funcionário a quem todos se referem como o “mau selvagem”, que se insurgia contra as humilhações infligidas por clientes, e inicia uma busca incessante e obsessiva por essa pessoa, até se começar, ele próprio, a transformar.
Embora reconheça que os preconceitos em relação aos imigrantes brasileiros não são um traço exclusivo da cultura portuguesa – existindo em outras comunidades, como por exemplo com os imigrantes sul-americanos em Espanha -, acredita que existem em Portugal com maior intensidade, porque “a comunidade brasileira é imensa”.
“Essa presença massiva, impossível de ignorar, naturalmente gera uma tensão, que nos últimos anos aumentou de tom pois a última vaga de brasileiros, mais instruída, treinada e capacitada que muitos portugueses, começou a ocupar espaços na sociedade não-reservados aos imigrantes, não mais apenas como futebolistas, vendedores e empregados de mesa”.
São trabalhadores em setores “nobres”, como medicina, advocacia ou gestão de empresas, disputando espaços, cargos e melhores salários, que se sabem expressar, trabalhar em rede e com capacidade de se mobilizar e pressionar. “As questões de imigração em Portugal sempre existiram, em maior ou menor proporção, elas agora só são mais visíveis, pois essa nova vaga de imigrantes amplificou o debate. É sobre esse cenário que trato n”O Mau Selvagem’, de forma alegórica”, explicou.
Para escrever sobre essa realidade, Álvaro Filho baseou-se não apenas na sua própria experiência – que não foi determinante porque admite ser um privilegiado, contrariamente às personagens da história, “cujo diploma não serve para nada e jaz esquecido numa gaveta de um roupeiro da Ikea” -, mas principalmente na “observação e escuta das experiências de imigrante de outros brasileiros”.
A escolha da estrutura policial – com todos os seus elementos típicos – para contar a história não foi casual, mas antes uma espécie de metáfora da realidade social que quis retratar.
“O policial é um género maltratado, um subgénero, visto de cima pelos outros, um pouco como um certo pensamento que situa o imigrante como um género menor de cidadão. Mas o policial permite, como género, uma leitura crítica da sociedade, pois lida com o poder, com a violência e com o dinheiro, com políticos, empresários e policiais corruptos”.
“Se queria tratar de um tema social, fazer uma crítica com um apelo para atrair o leitor, o policial parecia-me, portanto, o género apropriado”, acrescentou.
A escolha da livraria como espaço principal para centrar a ação também não foi por acaso e tem dois motivos simbólicos – explicou –, o primeiro dos quais é precisamente o já referido “falar brasileiro”, uma “diferenciação imposta pelos portugueses”, de duas línguas distintas, pelo que “se a questão gira em torno da palavra, natural que o cenário fosse uma livraria”.
O segundo é que “a livraria simboliza o mercado editorial, em Portugal talvez a última das fronteiras a ser quebrada pelo imigrante brasileiro que tem a palavra com matéria-prima, depois que os jornais abriram as portas”.
O escritor refere que a maioria dos autores brasileiros publicados em Portugal trata de temas no Brasil, o que habituou o leitor português a ler o autor brasileiro a escrever apenas da realidade brasileira, e “quando surge um autor brasileiro que vive em Portugal e tem como tema a realidade social portuguesa, isso soa uma ousadia”.
Exemplo disto é o facto de Álvaro Filho ter oferecido “O Mau Selvagem” a cinco ou seis editoras portuguesas e a editores que conhece pessoalmente e que “foram bastante sinceros” ao levantar a questão do “autor brasileiro não vende”, enquanto outros “não responderam e um outro disse que o tema não interessava”. Por isso, este romance, o sétimo do autor e o terceiro editado em Portugal, foi lançado pela editora luso-brasileira Urutau.
Para Álvaro Filho, a palavra e sentimento que caracterizam este seu romance é “justiça”, mas o escritor rejeita uma visão maniqueísta de “brasileiros versus portugueses”: “Não há bonzinhos e vilões nesse jogo da imigração, todos nós, até mesmo os portugueses que nos humilham num balcão dos serviços de imigração, somos vítimas de um sistema que vê o imigrante como mão-de-obra barata e que, quanto mais irregular estiver, mais barata ainda será”.
Mas o “imaginário português sobre o brasileiro tem mudado para melhor” e a presença desta comunidade cada vez mais acentuada em vários setores da sociedade “tem ajudado a quebrar certos estereótipos”, considera, reconhecendo que este é “um longo processo”.