O que podem as instituições culturais?
1. Democracia, instituições culturais e tutelas políticas
Uma cidade democrática é uma cidade que promove a participação de todas as pessoas e não descura os interesses da comunidade e de comunalização dos espaços e das suas instituições. A sustentabilidade do modelo de desenvolvimento assente na exploração de recursos e no turismo, a emergência climática ou o acesso a habitação digna são desafios que só conseguiremos enfrentar com uma sociedade justa e democrática, com espaços de liberdade para a participação na vida política, com lugares de exercício de cidadania plena para todas as pessoas.
A intervenção dos cidadãos na vida política passa pela escolha dos seus representantes em eleições, pelo escrutínio da acção política e dos processos de decisão, e pela participação em movimentos e organizações cívicas, mas são as instituições — empresas públicas, organismos executivos e todas as unidades que constituem o poder político — que podem fazer a diferença numa democracia mais aberta e participada. As instituições devem ser capazes de reflectir as dinâmicas sociais para dar as respostas que cada comunidade precisa em cada momento: as assembleias de cidadãos são uma ferramenta que vai ganhando força nalguns sectores políticos indicando um caminho possível para a reconfiguração das relações entre poder político, poder executivo e cidadãos.
As instituições culturais, por estarem teoricamente abertas a todas as pessoas, possuem o poder simbólico da reunião pública de cidadãos e são, por isso, fóruns de discussão e de debate social; são também lugares de exercício de vários poderes de representação e simbólicos, e podem servir de exemplo para auxiliar nesta reflexão.
Estas instituições, nacionais e municipais, correm o risco de sofrer de um complexo de tutela: ao mesmo tempo que respondem aos desígnios das tutelas políticas, fundamentam as suas narrativas no exercício de poder de direcções ou administrações personalizadas. Enquanto instituições culturais de uma sociedade democrática não podem declarar ser outra coisa que não plurais, abertas e contemporâneas; enquanto entidades tuteladas pelo poder político não deixam de ser estruturas executivas e representantes desse poder, quase nunca plural, raramente aberto e cada vez mais afastado da necessidade contemporânea de horizontalidade nos processos de decisão.
Processos menos horizontais de exercício de poder, recorrentes nas instituições públicas, implicam mecanismos mais rígidos de fiscalização por parte das tutelas. Direcções e administrações são assim pressionadas pelos resultados para justificar o seu bom desempenho, confirmando o princípio daboa gestão que emana de todas estas organizações, em vez de perseguir objectivos de serviço público. Os parâmetros para o bom desempenho e boa gestão são definidos entre tutela e tutelados sem qualquer tipo de ligação aos cidadãos que usufruem, real ou potencialmente, do trabalho da instituição
2. Autoria institucional e autoria cidadã: o sector cultural como exemplo
A missão de uma instituição cultural é ser contemporânea e interagir com os cidadãos, a sua actualização e diálogo com a cidade deve pois ser constante. Como pensar então num projecto para o futuro não deixando de estar atento às exigências do presente?
Criando organizações dinâmicas que ouvem os cidadãos para conhecer as suas expectativas em relação ao serviço público que devem prestar, integrando as comunidades nos processos de decisão de longo prazo sobre a sua missão; gerindo estas organizações em colaboração com todos os interessados no seu trabalho: público, artistas, profissionais, amadores, diferentes gerações de pessoas.
Organizando assembleias de política cultural para ouvir e agir colectivamente sobre os desejos e as necessidades dos cidadãos; desenhando programas específicos para cada instituição, para cada bairro e para cada comunidade; combatendo as desigualdades culturais, de acesso e de visibilidade no espaço público.
Este processo não se faz de um dia para o outro, exige tempo e vontade política. Exige que se renuncie ao efeito mediático da cultura rápida e ao poder (real e simbólico) concentrado em hierarquias personalizadas, e que se preste atenção às organizações da sociedade civil e às associações do sector.
Entretanto é urgente reduzir a autoria institucional e aumentar a autoria cidadã e colectiva se queremos ter instituições mais democráticas e capazes de cumprir com o serviço público independente do poder político.
Formas de governo mais democráticas em todas as áreas do poder — local, regional e nacional — devem ser perseguidas e desejadas pelos cidadãos. A cultura e a arte, as suas práticas e os seus processos críticos são muitas vezes metáfora ou campo de ensaio para outros sectores da sociedade; começar pelas políticas e instituições culturais — teoricamente um sector mais disponível para acolher a inovação e rupturas com processos existentes — poderá ser um bom caminho para testar novas relações institucionais com processos de decisão e de acção partilhados.
Quanto mais participada é uma decisão, com transparência e partilha de informação, maior é a probabilidade de ser bem-sucedida, reduzindo-se drasticamente a necessidade de fiscalização e de escrutínio dos processos.
Se o sector cultural – incluindo aqui todos os seus “actores” — for capaz de responder a este desejo político de transformação da cidade através de relações mais democráticas entre cidadãos e instituições, através de processos de decisão participados e acessíveis a todas e a todos, poderá servir de exemplo e ser o pontapé de saída que precisamos para um contrato colectivo com o futuro das nossas cidades noutras áreas fundamentais como a habitação, o ambiente e o combate às desigualdades.
3. O serviço público de cultura no Porto
A política cultural do município do Porto persegue, desde os anos 1990, os objectivos de serviço público através da gestão e dinamização de equipamentos culturais, e através do investimento (variável de acordo com os executivos) em estruturas e iniciativas privadas que complementam a oferta pública. As instituições municipais de cultura abraçaram ainda as missões ambíguas de animação da cidade, lazer e organização de eventos no espaço público, respondendo a objectivos diversos dos do serviço público de cultura: promoção turística e entretenimento comercial sazonal, festividades temáticas de apoio ao comércio, festivais gastronómicos, provas desportivas e até provas de automobilismo.
A intervenção da autarquia na vida cultural e artística da cidade no tempo de Rui Rio (2001-2013) teve um desinvestimento muito criticado que justificou parte da atenção que o vereador Paulo Cunha e Silva (2013-15) trouxe para uma nova política cultural de cidade, carregada de ar fresco, de iniciativa curatorial e de energia produtora. Na sequência dessa política, marcada pela efemeridade e pela personalização autoral do seu conteúdo, entrámos numa era de hiperbolização dos eventos culturais e artísticos, e num processo de transfiguração da tutela política numa entidade produtora de conteúdos ao serviço da animação e da comunicação política da cidade. Cooptando muitas das iniciativas independentes – que por falta de meios sólidos e por necessidade de acesso a espaços e a recursos municipais não tiveram outra alternativa que não fosse a de se deixarem cooptar — a autarquia é hoje a grande promotora da actividade cultural e artística na cidade e dela depende, directa ou indirectamente, parte significativa das estruturas e da actividade cultural de iniciativa privada.
O generoso investimento municipal feito no sector nos últimos anos foi fundamental para responder às necessidades de artistas e públicos, e deve ser reforçado sempre que possível. No entanto, é urgente reverter alguns dos objetivos inerentes a esse investimento que têm marcado a tutela política do pelouro.
O tudo pode acontecer em todo o lado que o município promove nas suas políticas contribui para que nada aconteça porque sim, porque a cidade é apenas uma cidade. No Porto nada acontece sem a tutela e sem regras impostas por uma qualquer instituição municipal que, dominando e dispondo dos meios e dos espaços públicos, nos concede de forma paternalista e excepcional o direito de usufruir desse espaço durante um evento.
As instituições culturais parecem seguir hoje os mesmos objectivos de todas as políticas que a cidade adoptou na última década: mercantilização e promoção, intensidade e momentos festivos, invasão indiscriminada do espaço público, transformação do que é comum em espaço privatizado ou com regras de ocupação excepcionais. Assistimos pois a uma integração total da actividade cultural nos mercados de experiências das sociedades (neo-liberais) contemporâneas.
O modelo centralizador e utilitário que o município do Porto tem seguido na política cultural resultou nos últimos anos, para dar um exemplo, num projecto de Museu da Cidade retalhado com vários anúncios de ideias avulsas tão inconstantes como as suas direcções personalizadas, mas demasiado dependentes do poder político: três directores em quatro anos, cada um com seu perfil e objectivos sempre novos.
Outro exemplo será o antigo Matadouro, projecto-símbolo desta nova política cultural, que já teve tantas apresentações públicas quantas as visitas feitas à obra com fotógrafos e jornalistas. De grande projecto cultural para a cidade passou a ser um espaço comercial quase todo privatizado focado no entreteni-evento, na atração comercial, na reconversão imobiliária e sem que se conheça uma ideia transformadora para aquela zona da cidade.
O ponto comum a estes dois exemplos é, mais uma vez, a total ausência de diálogo entre estes projetos e a populações que deviam servir. Sendo responsável pela gestão, e proprietária, da maior parte dos equipamentos culturais da cidade (museus, teatros, bibliotecas, entre outros), e tendo responsabilidades políticas e simbólicas na Casa da Música e na Fundação de Serralves, apesar de serem entidades privadas, a autarquia tem espaço e recursos para fazer mais e melhor.
A personalização das políticas e a hierarquização que marcam estas instituições tem sido um entrave àquela que deveria ser a sua missão: serem entidades abertas à cidade capazes de dialogar com a população; serem ferramentas de reflexão para a cidadania, espaços de confronto e de colaboração entre diferentes expressões e práticas artísticas, espaços descentralizados de exercício da democracia cultural, espaços de convívio intergeracional e interseccional abertos a todas as pessoas.
4. Tutelas de cidadania para a política cultural
O capitalismo cultural focado na exploração de eventos e no mercado da visibilidade não serve os interesses públicos, porque os seus modelos de gestão assentam no resultado mediático e na afirmação de objectivos alheios à população que deviam servir. Modelos alternativos de governação são por isso necessários e urgentes.
O Conselho Municipal de Cultura é um órgão consultivo da autarquia que reúne uma vez por ano (em 2022 nem isso), e serve essencialmente para validar a política cultural municipal perdendo relevância quando os seus membros divergem da vereação. Uma nova forma de fazer política pode começar por criar conselhos de cultura efectivos e dessacralizados; ou fóruns de discussão — não com os cidadãos ilustres que a cidade tanto aprecia, mas com todas as pessoas interessadas em discutir a missão das instituições culturais e artísticas da cidade; ou assembleias culturais diversas, inclusivas e sem tutelas políticas, onde se possa reflectir sobre cidadania e cultura, onde seja possível desenhar novas formas de serviço público e imaginar missões para as instituições e para as práticas artísticas, profissionais e não profissionais.
É possível criar mecanismos de diálogo com a população para desenvolver políticas de longo prazo que persigam objectivos mais próximos do interesse público. Isto implica deixar de lado projectos pensados por alguns para dar corpo a projectos e políticas pensados por muitas pessoas.
E se num museu da cidade, por exemplo, em vez de um conjunto complexo de espaços que exigem um elevado investimento de comunicação para que seja compreensível o seu conceito, tivéssemos espaços para uma cultura contemporânea de proximidade e de participação cívica? Um museu multiplicado nas suas missões, respondendo às exigências do património, da memória, da criação contemporânea e das populações de cada território.
Para além das instituições que tutela, o município dispõe de espaços com projectos pontuais e desgarrados da realidade territorial. A Biblioteca Infantil Ivo Cruz, no Marquês, é um exemplo de sazonalidade festiva incompreensível; o Teatro da Vilarinha deixou de prestar serviço público numa zona sensível da cidade; a Quinta do Mitra está renovada mas sem conteúdo, tal como o Centro de Convívio e Cultural das Areias, ambos em zonas marcadas pelas desigualdades no território urbano.
Em vez de insistir no monopólio das autorias das políticas culturais, a autarquia deve desenvolver programas, para estes e para outros espaços da cidade, a partir de assembleias culturais de cidadãos e em colaboração com artistas, colectivos e associações locais. As assembleias culturais podem ser o início de uma política ao serviço das pessoas afirmando uma necessária transferência de poderes da tutela política para as tutelas de cidadania.