Entrevista. Thomas Vinterberg. A nova série catástrofe do realizador, o luto da filha e a esperança na humanidade
“Families Like Ours” mostra um Thomas Vinterberg com esperança na humanidade a partir da Dinamarca. Mas antes tira-lhes tudo: até o próprio país. Estreada no Leffest – Lisboa Film Festival, os sete episódios vão estar nos canais TVCine a partir do dia 19 de novembro.
Já com o relógio quase a bater nas 16h00, o Hotel da Lapa estava sossegado. Foi ali colocado o pequeno centro de operações do Leffest, festival de cinema organizado pelo produtor Paulo Branco, com fim programado para o próximo domingo, que tem sido mais conhecido por trazer nomes grandes do cinema europeu e norte-americano. No andar de cima, espera-nos Thomas Vinterberg, realizador dinamarquês e autor de filmes como “The Hunt” (2012) e “Another Round” (2020). Aos 55 anos, já mostrou que o cinema nórdico é capaz de ir ao fundo da raiz humana, sem artifícios, colocando sempre a hipótese de que estamos muito perto de um completo estado de loucura. De que gostamos de estar fora de controlo. De que basta um rastilho para a confiança cair por terra. Pelo ar apromado, de camisa branca e voz serena, Thomas Vinterberg não parece, ainda assim, pessoa de explorar o lado mais obscuro do ser humano. Teve um dia ocupado com entrevistas, almoçou em apenas oito religiosos minutos. A seguir partiu para Copenhaga. Veio mostrar a sua primeira série de televisão, “Families Like Ours”, sete episódios com uma simples pergunta: o que faríamos se o nosso país fosse evacuado na totalidade por causa de um desastre climático iminente? “Os dinamarqueses acham que são solidários mas o que é que acontece quando temos uma crise destas? O que acontece à solidariedade? Vendemos a casa para que o comprador perca dinheiro? Roubamos? Era esse lado negro da nossa imagem pública que queria explorar”, conta em entrevista à Comunidade Cultura e Arte.
Na série, a subida do nível das águas é motivo suficiente para que o governo decrete que todo o país, por fases, terá de ser evacuado. Famílias desfeitas, negócios arruinados, o caos de uma sociedade vista como uma das mais organizadas, ricas e eficientes do mundo, está prestes a causar o seu desaparecimento do mapa. Nos Países Baixos correu mal, portanto, a Dinamarca terá de jogar na antecipação. Os mais ricos pagam o seu realojamento para onde quiserem. Os mais pobres ficam nas mãos do Estado. Estamos perante refugiados privilegiados e não os que têm ido parar à comunicação social, esquecidos nas águas do mar Mediterrâneo. Mais de perto acompanhamos uma típica família dinamarquesa: o pai Jacob (Nikolaj Lie Kaas) é arquitecto, a mulher Amalie (Helene Reingaard Neumann) que trabalha em psicologia, a filha dele, Laura (Amaryllis April August), está prestes a candidatar-se à faculdade e arranjou um novo grande amor. Do outro lado, a mãe de Laura, reputada jornalista com baixa médica por stress. Há ainda um casal endinheirado, Nikolaj (Esben Smed) e Henrik (Magnus Millang), onde um deles trabalha com o governo e decide contar antecipadamente a esta família o que vai acontecer. “Estão todos a tentar ganhar controlo outra vez. Refazer as suas vidas e reagir a algo incontrolável. Nós, enquanto sociedade, queremos mudar mas somos incapazes, o que cria um grande sentimento de culpa. Até as gerações mais novas, que querem mesmo essa mudança, não a alcançam. Não mudam. Esta série não vai mudar a mentalidade de ninguém, mas pode ser que as personagens gerem empatia. Que ressoe algo no público. Claro que este é o cenário mais optimista”, confessa Thomas Vinterberg.
“Agora parece não ser o tempo para revoluções. A indústria está com medo, numa posição de espera. O que vai acontecer ao cinema e à televisão? É natural estarem assim. Estou ansioso para que esse movimento revolucionário chegue”
É macabro, ou talvez não, que os episódios que estrearam no Leffest venham a reboque de uma das maiores tragédias dos últimos anos na Península Ibérica: as cheias em Valência, que fizeram dezenas de mortos e feridos e milhões de euros em estragos. Thomas Vinterberg, quando questionado sobre se é mais fácil, e também injusto, para um europeu relacionar-se com um desastre ambiental de um país vizinho do que com os vários episódios climáticos de outros continentes, tem uma resposta óbvia: sim, ponto final. “A crise tem de nos ser próxima. É como estar no Titanic em primeira classe. Sabes que a água está a chegar mas ainda está nas cabines inferiores, portanto, continuas a comer. É assim que somos. Daqui a dois ou três meses já ninguém se vai lembrar do que aconteceu em Valência. A tal geração mais nova quer a mudanças mas continua a consumir demasiado, continua a andar muito de avião”, argumenta.
A ideia para a série tem anos. Mais concretamente, seis. Depois de desenhar a sinopse, Thomas Vitenberg, que diz, noutras entrevistas, ter tido vontade de explorar esta história depois de não se ter sentido bem a viver em Paris e de observar como os sírios estavam a ser integrados na Dinamarca, mostrou-a à mulher, a atriz Helene Reingaard Neumann. Além de trabalhar em representação é também padre luterana. Durante a rodagem de “Another Round”, o realizador dinamarquês perdeu uma filha. Quando mostrou o guião a Helene Reingaard Neumann, a mulher respondeu-lhe: “acho que estás com uma depressão, tens de meter mais esperança nesta história e, sobretudo, na tua vida”. “Sim, perdi a minha filha, estava de luto. Ainda estou. A minha maior conquista foi ter voltado a ter esperança. Fui tornando a série cada vez mais negra e negra e depois abrir, de trabalharmos juntos, de nos reinventarmos. Aí, sim, tenho optimismo”, revela.
A série teve honras de estreia no festival de Veneza este ano, tendo passado pelo TIFF no Canadá e no BFI em Londres. Thomas Veinteberg, que tem mais uma série a caminho e uma ideia sua para um projecto sobre o qual não quis falar, tentou ser o mais realista possível para desenhar um cenário em que um país tem de ficar completamente vazio, com uma população inteira à procura de refúgio e de salvar todas as posses. Durante todos os episódios, o importante não são as imagens das cheias a destruir casas e edifícios. Não é o completo desespero dos rostos que ficaram sem nada, como aqueles que vimos nas várias reportagens de Valência. A equipa por detrás de “Families Like Ours” conversou com figuras do Estado para desenhar o plano de operações. “Artisticamente era importante a série ter esse peso de parecer uma saga, de ter uma estética onde nos aproximássemos do esvaziamento do país. Falámos com muita gente ligada ao Estado dinamarquês. Mas a grande pesquisa, durante meses e meses, foi mesmo a que fizemos para atingir um nível de especificidade relativa a todos os países por onde a série passa”. Durante um ano, o projecto passou por Dinamarca, Suécia, Chéquia, Roménia e França, fazendo com que fosse uma das maiores produções daquele país. “O tamanho não era importante. É mais ´fácil´ fazer um filme grande, porque há mais gente a executar tarefas por ti”, diz.
“Nós, enquanto sociedade, queremos mudar mas somos incapazes, o que cria um grande sentimento de culpa.”
Thomas Vinterberg venceu o Óscar com “Another Round” em 2021 para Melhor Filme Internacional. Já não é, por isso, um desconhecido. Mas em 1995, ao lado de figuras como o realizador Lars Von Trier, achou que era um momento para lançar um movimento cinematográfico, mais realista e menos colado ao lado comercial, como uma série de práticas e regras para se filmar. Câmara de filmar sempre à mão, uso específico de banda sonora, filme a cores e rodado em locais verdadeiros. Era uma tentativa de resgate da sétima arte das poderosas mãos do sistema de Hollywood. “Celebration”, onde uma festa de 60 anos revela alguns podres familiares, simbolizava essa rebelião contra o status quo. A catarse entre pais, filhos e avós e a tragédia daquilo que não se resolve, vai marcando a carreira de Thomas Vinterberg. Veio a fama. As colaborações com Mads Mikkelsen. Mas essa vertigem de estar à beira de se testar uma fórmula nova pode não voltar. Ou, se voltar, virá com outro estatuto. “Tenho saudades desses tempos. Foi uma explosão de criatividade, arrogância, brincadeira e vaidade. Esse filme foi dos mais consequentes que fiz. E sim, sinto falta de uma revolução como foi o ‘Dogma’. Não posso fazer uma outra vez, tenho 55 anos. Mas ando à espera de algo do género há 30 anos. Agora parece não ser o tempo para revoluções. A indústria está com medo, numa posição de espera. O que vai acontecer ao cinema e à televisão? É natural estarem assim. Estou ansioso para que esse movimento revolucionário chegue”, assume o realizador.