Entrevista. Lola Arias fez “Reas” para dar futuro a quem vive na prisão
Realizadora argentina testa o público com um musical onde mulheres cis, homossexuais e trans reinterpretam vidas passadas na prisão. “Reas” estreia agora em Portugal, é distribuído pela Leopardo Filmes, e conversámos com Lola Arias em San Sebastián.
Há uns anos, um projecto solidário da Fundação Calouste Gulbenkian tinha o objetivo de ensinar a jovens presidiários a arte por detrás da música clássica. Em palco, montaram um espectáculo com o objetivo de colocar jovens a cantar árias e coros de “Don Giovani”, dando uma nova hipótese de reabilitação através da cultura a quem, de repente, por supostos crimes cometidos, fica sem um caminho para o futuro. O projeto voltou a surgir a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude. Um exercício de empatia lançado a quem não é suposto ter uma nova oportunidade. Do outro lado do mundo, a realizadora argentina Lola Arias, que não parece dada à religião, é do teatro. Estudou Dramaturgia em Buenos Aires, tendo, entre 2001 e 2007, escrito seis peças de ficção. Tem o lado de documentário, onde produziu tantos outros projectos, habituou-se a pegar em pessoas e em colocá-las em lugares onde possam reinterpretar a própria vida. Do palco para o cinema, sem largar a convicção de que a arte pode dar um rumo diferente. Em 2018, lançou o seu primeiro filme: “Teatro de Guerra”, estreado no festival de Berlim. Seis anos depois, regressou ao festival, no país onde vive, para apresentar “Reas”, um luminoso musical sobre um grupo de mulheres ex-presidiárias que estreia agora em Portugal depois de ter passado pelo LEFFEST – Lisboa Film Festival. Falámos com a cineasta no Festival de San Sebastián, numa altura em que, diz, o presidente argentino Javier Milei está a destruir a cultura. “Tudo o que é do Estado está a ser destruído, é um desastre. O governo decidiu atacar os artistas, somos todos considerados parasitas que vivem de subsídios, as políticas culturais estão a ser desmanteladas. O cinema argentino está em perigo de morte. 2025 pode ser um ano sem nenhum filme argentino”, diz-nos. Se a política parece destruir, Lola Aris propõe voltar a por de pé o que parece irremediável.
Cobrir um festival pode, muitas vezes, ser um acto puramente aleatório. Com tantas secções, e quando o trabalho dá uma pequena folga, é natural um jornalista usar o seu tempo para ver filmes que só se encontram nestes ambientes. Numa das salas principais, na secção Horizontes Latinos, foi apresentado “Reas”. No palco, praticamente só mulheres. O preconceito de um público mais desatento dita que aquelas figuras não estão habituadas a tamanho protagonismo. E a surpresa maior chega quando se percebe que essas mesmas figuras vão ser protagonistas de um musical que reinterpreta o universo particular que se vive dentro de uma prisão. Mas em “Reas” a espectacularização da violência não tem propósito. Encontramos uma segunda família, feita de pessoas trans, mulheres cis, guardas prisionais que já cometeram crimes, nada é mais a preto e branco. Protagonistas que estão neste filme para voltar a ganhar controlo sobre si. E sobre uma possibilidade de futuro que parecia impossível. “Espera-se que um filme sobre prisões seja sórdido, por ser um lugar de violência, pesado, com muita carga. Não queria fazer um filme assim, que estigmatizasse. Queria beleza, amor, inocência e graciosidade, daí fazer um musical, que reconstruísse a vida destas pessoas”, diz-nos.
Tudo começou em 2019, quando Lola Arias decidiu fazer um workshop dentro de uma prisão em Buenos Aires. Muita dança e improviso, permissão para se jogar com a liberdade dentro de uma realidade de quem perdeu direitos. Daí surgiria um guião. E depois, claro, um filme. A ideia seria trabalhar com quem ainda estava preso. Só que a pandemia de Covid-19 baralhou o processo da realizadora argentina, impedindo que o projecto fosse feito nos moldes que Lola Arias tinha desenhado. Ficou, no fim, quem, de um grupo de 14 pessoas, já tinha sido libertado para que fosse possível reconstruir esses momentos, que são horas, dias, meses e anos que podem muito bem parecer todos iguais. “Uma prisão de mulheres absorve várias identidades não binárias. Comoveu-me muito perceber que as ferramentas para se sobreviver a esse contexto estão relacionadas com a solidariedade entre o grupo, de criar vínculos, quase como uma família. São vínculos que te salvam, porque se não os tens dentro da prisão, morres de solidão”, refere Lola Arias.
E porque é que o musical funciona tão bem em “Reas”? Primeiro, porque não é expectável ver ex-presidiárias a cantar e a dançar. Se acha que é, está a mentir. Depois, porque dentro do limbo em que é construído o filme, sempre a navegar à vista entre a ficção e o documentário, nascem verdadeiras estrelas de cinema. Sabemos que aquelas mulheres cometeram crimes. As decisões que tomaram – sejam elas justificadas ou irracionais, erradas ou controversas – e a definitiva cruz que carregam dentro de uma prisão, não devia dar-lhes o mínimo de vontade em entrar num género tão fantasioso como o musical. E a expectativa era que não fosse sequer possível terem alegria, ou mesmo prazer, em voltar a um passado de dor e sofrimento. Mas, em “Reas”, têm. Lola Arias não procura o perdão do público. Ou a compreensão. O foco está todo em tentar que as suas protagonistas recomecem a vida. Nota-se essa alegria no concerto da banda “Sin Control”, criada na prisão. Numa deliciosa cena, onde a quarta parede é quebrada, entre um casal que se engana e volta a repetir a cena. E num dos mais belos planos de cinema de 2024, onde o mesmo casal está a viver a lua de mel dentro daquelas descaracterizadas quatro paredes.
“Não houve escolha de actores nem casting tradicional. Fomos formando este grupo ao longo destes anos. Gosto da ideia das pessoas não perceberem se quem está ali são atrizes ou não. Porque o problema do cinema que retrata esta realidade é a de tornarem a violência num espectáculo, fazendo disso o centro da história. Não permite olhar com mais profundidade para este contexto”, afirmou.
“Reas” também estará no Porto (não foi possível saber ainda a data) mas como peça de teatro que Lola Arias criou, e que tem feito várias paragens na Europa, de França à Noruega. Agora, estas atrizes têm um contrato de trabalho, um emprego novo, contas bancárias, documentos em dia. Nada disto existia nas suas vidas antes deste musical. “O projecto não termina com o filme. Elas reintegraram-se socialmente através de ‘Reas’. Quis dar-lhes uma oportunidade, porque perderam a confiança, a disciplina de fazer parte de algo, o compromisso. Tudo isto pode permitir que, no futuro, encontrem outro trabalho. A liberdade é um caminho que se vai construindo. Elas podem agora imaginar-se mais à frente”, disse. Sobretudo, porque a prisão cria um ciclo vicioso de quem lá entra. É que, muitas vezes, volta-se para dentro. Nunca mais se sai. “Temos protagonistas que entraram e saíram dos seus 17 anos aos 37 anos de idade”, contou. Os rostos abraçados no fim da exibição do filme em San Sebastián são o enquadramento perfeito para o que Lola Arias defende.