É vosso, o Natal

por Henrique Pinto de Mesquita,    22 Dezembro, 2024
É vosso, o Natal

Dizem-me: «É Natal, anima-te.»

Animo-me: é Natal: há demasiadas sobremesas, cães a ladrar e cães vestidos. As origens, durante o ano esbatidas, voltam a sentir-se: os pobres lembram-se de que são pobres e os ricos de que são ricos. Os sotaques, entretanto consumidos pela máquina neutralizadora, aproveitam para respirar. As famílias esforçam-se e vestem as mesas com a melhor roupa.

(Não há maior materialização de classes do que uma mesa de Natal).

É Natal: a verdade, diluída durante o ano pelas ruas que escolhemos, assalta-nos a mente: «Ser gay afinal não é assim tão comum»; «a minha família dá dois beijinhos» e «comer rabanadas é claramente melhor do que correr de manhã». O bacalhau continua salgado e a classe média alta a mais desinteressante:

— O que achas de dar um perfume ao meu pai?

— Acho ótimo.

Acho ótimo que sejas filho do teu pai e a única coisa de que te lembres seja um perfume. Irá honrar todos os ensinamentos que dele recebeste.

— Aquele do Davidoff?

— Perfeito.

Perfeito, perfeito, perfeito: e lá vai o pai deste cabeça de abóbora cheirar ao mesmo que todos os homens deste país.

(Estou animado, juro.)

Juro que o Natal não me incendeia todas as fragilidades; que a pressão para estar feliz não me amassa o espírito e que a felicidade das vossas famílias perfeitas não me deixa a suspirar sobre a que pouco sinto. Os avós já estão todos mortos e as crianças por nascer: uma árvore de melancolia enfeitada com bolinhas de cristal — eis-me no Natal.

É, por isso, vosso, este dia: amo-te Tião e amo-te Pião a saírem dos escritórios vestidos nos sobretudos navy blue, carregando um bolo-rei para entregar às avós, madrinhas e mães que beijam sem beijar e de quem ouvem qualquer coisa bonita que cai bem no coração. E que, orgulhosas, reparam no cachecol que ofereceram no Natal passado. E vós sorris — e apresentais a Matilde. E a Matilde sorri — e está apresentada. E tudo está bem: a sala está aquecida, a televisão sem som e vocês amam-se uns aos outros.

É vosso, o Natal: amo-te Alberto e amo-te Maria, que nessa noite dão uma sova na injustiça e lambuzam-se da verdade do amor dos filhos e netos. Que gritam, bebem e enchem de manchas uma toalha vermelha usada apenas na data. E os guardanapos, também vermelhos, são fechados por pequenos elásticos com renas de papel. E os irmãos dão-se: ela ama-o e ele ama-a. E a televisão está aos gritos. E o cão salta ao peixe. E há prateados e dourados sem critério: é fausto e belo o espírito português.

Nasceu o Deus menino. Eis-vos: quentes, barulhentos, felizes, amorosos, uns por cima dos outros, com filhos, ranho e vinho tinto. Eis-vos: cansados, bonitos, esperançosos, diluídos na verdade que criais. É vosso, claramente vosso, o Natal — mas vocês são meus: e essa sorte é toda para mim.

Esta crónica foi originalmente publicada no Instagram do Henrique Pinto Mesquita e, com a devida autorização do autor, foi aqui reproduzida.

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