A democracia participativa está viva em Aveiro
O “projeto” da autarquia para o Rossio mobilizou largas dezenas de cidadãos na sessão da Assembleia Municipal de Aveiro de ontem à noite, num sinal de interesse cívico que se saúda. Na curta intervenção que tive no período dedicado aos cidadãos, procurei apresentar cinco pontos de reflexão para aprofundamento futuro. Completo (e clarifico) agora o que pretendia dizer.
1) O debate sobre o Rossio deveria ser ancorado numa discussão mais ampla sobre o modelo de cidade que queremos para Aveiro. Pelo que tenho lido e ouvido, há um consenso alargado em torno de alguns princípios: uma cidade de bairros, que valoriza formas mais sustentáveis e seguras de mobilidade, que qualifica e quer dar vida ao seu espaço público, que quer estimular, de forma colaborativa, a cultura, a criatividade e a inovação, que incentiva o envolvimento dos cidadãos na co-criação dos seus projetos.
Haverá este consenso? Se sim, não seria importante assegurar uma coerência entre estes princípios, o planeamento da cidade e a definição dos projetos estruturantes?
2) A modalidade de concurso de ideias não é o instrumento mais adequada para planear o território, sobretudo quando estamos em presença de espaços de grande sensibilidade. Como reconheceu implicitamente o projetista vencedor do concurso de ideias, esta metodologia tem limitações. Os projetistas respondem a um caderno de encargos que não podem contrariar, gastam um tempo limitado de investigação (o que não lhes permite um conhecimento adequado do objeto que querem transformar) e fazem um trabalho sem qualquer contacto com a autarquia e com a comunidade (decorrente da natureza do concurso, de propostas anónimas).
Perante a sensibilidade do território e a sua importância para a comunidade, não teria sido mais indicado encontrar uma outra modalidade, uma outra forma de encomenda?
3) A participação é mais do que a auscultação pontual de cidadãos. Para explicar essa diferença, Sherry Arnstein faz uma analogia entre a participação dos cidadãos e uma escada de oito degraus. Nos dois primeiros degraus, estamos em presença da não participação. Poderá haver uma espécie de faz-de-conta em que se promove o envolvimento da população, através de ações de manipulação ou de simulação de esclarecimento. Subindo mais um pouco, nos três degraus seguintes, ela identifica os níveis mínimos de envolvimento, através da informação, da consulta e da concertação. Por último, no topo da escada, está a parceria, a participação no poder e o controle pelo cidadão).
No presente caso, houve dois momentos de exposição de informação. A sessão no auditório da Fábrica Campos, onde foi apresentado o projeto vencedor do concurso de ideias, e a sessão na assembleia municipal onde os cidadãos puderam exprimir a sua opinião (só sete cidadãos em pouco mais de 30 minutos; sem contraditório na reposta). O programa de concurso promovido pelo Município de Aveiro, onde se definiram os objetivos do projeto, não mereceu uma reflexão pública prévia.
O arranque da intenção de projeto iniciou-se há mais de um ano. Não teria sido possível auscultar a comunidade sobre os objetivos e o programa nessa altura? Haverá ainda outras formas e momentos de participação?
4) O Rossio não é um lugar qualquer. É um território único da cidade de Aveiro. É o seu coração, o pulmão do Bairro da Beira-mar e, também, um dos braços da ria de Aveiro.
Ao longo da sua história, acolheu um local de culto (a capela de S. João, destruída em 1910?), um velódromo (1895), um campo de futebol (1921), uma praça de touros (1946), um cinema ao ar livre (1928), a Feira de Março (anos 50, 60 e 70) e a Agrovouga (entre outros)
O Rossio tem como função principal ser um jardim da cidade e do bairro da beira-mar e também um local onde ocorrem eventos, alguns deles de escala e impacto desadequados. Felizmente, nos últimos anos, a cidade ganhou espaços alternativos onde alguns daqueles eventos podem ocorrer. Parque de Feiras e Estádio para os de grande dimensão, o Jardim Fonte Nova e a Praça Marquês de Pombal para os de menor escala, para citar alguns exemplos.
Sendo assim, como compreender a opção programática de «grande praça de eventos da cidade»? E como é que a opção de mais «um espaço de estacionamento ao nível do subsolo, capaz de substituir e reforçar a oferta atual à superfície» é compatível com «acentuar o caracter pedonal de toda a área de intervenção» (citações do Caderno de Encargos)?
5) Ainda estamos a tempo de transformar este exercício num processo amplamente participado e útil para melhorar o Rossio e dotá-lo das qualidades e benfeitorias que carece. Existem na nossa comunidade conhecimento, experiência e disponibilidade para que o Rossio seja planeado de uma forma exemplar, valorizando as qualidades ambientais, sociais e urbanísticas que dispõe e para tirar partido do enorme potencial de experimentação que nesta cidade se respira.
Crónica escrita por José Carlos Mota