A aclamação da voz de Julianna Barwick
O fumo saído de uma máquina envolvia a parca constituição do palco do Teatro da Trindade: uns sintetizadores empilhados em cima de uma mala. Apenas disso precisou Julianna Barwick. O ambiente conferido pelo espaço e pelo fumo era místico, mesmo antes da música começar a soar, e o público expectante já ansiava ouvir a voz angelical da americana, que entrou em palco cinco minutos depois das dez da noite, envergando um vestido branco largo.
Sem grandes delongas, atirou-se à apresentação de temas do mais recente Will, álbum que mantém o registo de música ambiente, mas com uma veia mais austera. A voz é a mesma de sempre, que Barwick vai acumulando com samples feitos no momento, formando cascatas vocais que desaguam sobre o espectador. Fechando os olhos, tamanha densidade sonora quase faz parecer que o palco se encontra povoado por um coro de anjos; mas ao abrirmo-los, somos confrontados com a figura desarmada da artista, que põe o seu coração nas melodias esparsas e lindíssimas. A voz é o seu instrumento principal, e usa-la de forma exímia.
Na segunda canção, “See Know”, temos uma experimentação com sons mais electrónicos, feitos com o seu sintetizador Moog. A sonoridade afasta-se bastante do piano minimalista e suave a que estávamos habituados e, apesar de soar muito bem, preocupa-nos que o resto do concerto pudesse seguir o mesmo rumo, privando-nos da beleza mais directa das suas canções. Tal não aconteceu. Assim, este pequeno desvio foi uma bela surpresa.
As canções seguiram-se todas umas às outras, sem pausas para aplausos. Seguiram-se como uma série de crescendos e decrescendos sequenciais. Catarses melódicas davam lugar a períodos contemplativos, de forma paciente. Isto é música que requer atenção, e Julianna Barwick consegue captá-la, como o prova o silêncio sepulcral da audiência.
O contraste da estaticidade do público sentado com as nuvens de fumo que dançavam à volta de Julianna era poético. Era como se a sua música fosse povoando a sala de vultos invisíveis que moviam o fumo num corrupio, reforçando a tese de que a sua voz possa ser comparada à de anjos. Uma tese irrealista, mas que é passível de ser considerada pelos mais cépticos ao ouvir as suas canções.
O sample vocal de “One Half” (do álbum de 2013, Nepenthe), único elemento pré-gravado no concerto, parecia vir dos camarotes do sumptuoso teatro e ecoar pelos seus corredores. A misticidade do preâmbulo do espectáculo confirmou-se ao longo do concerto, que culminou neste momento emocionante. O tímido “thank you” final arrancou o público das suas cadeiras, para ovacionar a cantora que tentava agradecer a calorosa recepção lisboeta. Pelo meio dos aplausos, conseguimos ouvir a sua declaração de amor à cidade, onde, inclusivamente, escreveu alguns temas do mais recente álbum.
Com a continuação da forte aclamação da audiência, tão depressa como Julianna Barwick saiu do palco, assim regressou, para nos agraciar com aquela que é, possivelmente uma das suas canções mais bonitas. “Flown”, retirada do álbum de 2011 The Magic Place, é de levar às lágrimas. Desde a sobreposição das camadas vocais que encaixam na perfeição, criando uma névoa de som brilhante, à linda melodia do piano sem efeitos, foi um final mais do que adequado para um concerto onírico. Barwick dedica a canção ao pai, que está algures no público, e que adora a canção. Nós também.
Saímos para a azáfama citadina, mas a sensação de paz não nos abandona tão depressa. Aliás, é exacerbada pelo contraste entre o ambiente que se viveu na sala de espectáculos e o bulício da cidade. Tal é a nossa sorte de ter artistas como Julianna Barwick, que confiam na paciência do público para o recompensar com o presente mais bonito, a sua música.