A alegria intacta
Coisa bizarra e única a vida, de que o cronista também felizmente vai padecendo. Ainda a semana passada andava às voltas com a tristeza e a sua subvalorização e eis que hoje é a alegria que me convida para dançar. Porquê? Não sei, francamente. Não terá sido, garanto, por alguma experiência súbita e impactante, uma espécie de meteorito feliz. Não, parece ser um sentimento mais sereno, algo que percebemos que tem secretas fundações e que conhece bem os cantos à casa que somos nós mesmos. O leitor sabe: de repente acordamos, numa manhã qualquer de um dia qualquer, e parece que estivemos a sorrir durante o sono. Sem razão, sem culpa, sem destino. Nem se perde tempo a perguntar se será isto a tal felicidade de que se ouve falar; arrumamos o nosso estado no “sinto-me bem” para não estragar e vamos à vida depressa antes que isto passe.
Assim estou, amigos, e faço o diagnóstico convosco ao mesmo tempo que as palavras me surgem. Ganho tempo a procurar as causas deste sentimento que me assola. É provável que a antecipação da Páscoa – momento que como crente muito me diz – tenha a ver com esta discreta euforia. Terá, não duvido. Mas suspeito que há mais e olho para o retrovisor para ainda ver os dias que passei a trabalhar com amigos – um deles meu companheiro de infância e de carteira. Poder trabalhar com quem se gosta a fazer o que se gosta é um privilégio que pude escolher há muito tempo. Nem sempre é fácil porque implica momentos em que pura e simplesmente não existe essa possibilidade e que naturalmente se vai reflectir nas condições de subsistência material. Mas, amigos, não há preço para poder exercer cumplicidades. Nenhum sacrifício irá fazer esquecer o prazer de dar e receber na companhia de quem estimamos. E aqui chegado descubro que muita desta alegria – os esotéricos de serviço dirão “energia” mas por favor fiquem calados – provém também desta gratidão imensa e sempre inesperada que advém de poder trabalhar com amigos e saber que irei continuar a fazê-lo.
Admito sem problemas a minha incapacidade de descrever o que estou a tentar partilhar. Felizmente sempre houve e haverá quem possua palavras-espelhos e é sem surpresa que o meu cérebro remissivo me entrega de imediato esta maravilha do grande cronista e meu mestre Antônio Maria, que antes do seu precoce desaparecimento aos 43 anos teve tempo ainda de dizer o que é esta “alegria intacta”. Fala, Antônio: «A alegria de que eu falo não deve ser confundida com o prazer formal, o prazer-palavra, com que se aceitam os convites. É alegria intata, de alma e corpo, dessa alegria que faz as pessoas se sentirem leves, intemeratas e bonitas. Uma alegria que substitui o almoço, o jantar e o banho. Que faz esquecer o Passado, todos os passados, a ponto do paciente se perguntar: “Quanto tempo faz que houve ontem?”». Coisa bonita, não disse?
E é isso, é isso mesmo. Como aquele enorme navio encalhado no Suez, por vezes a vida só precisa de um pequeno rebocador para que o mundo volte a ser, por um dia que seja, um oceano manso e de águas límpidas.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.