A anatomia da (des)informação
“Beba água ou chá quente. Curam o coronavírus”, “Recorrer a álcool gel antisséptico é desnecessário”, “A cura deste vírus é igual à da gripe” ou “Não nos preocupemos tanto porque os sintomas desta doença são ligeiros”: quantas frases semelhantes a estas lemos e ouvimos nos últimos dias através de informação veiculada por órgãos de informação e utilizadores das redes sociais? Naquilo que diz respeito à época conturbada que vivemos, na vertente do conhecimento ou pseudoconhecimento que consumimos e em que acreditamos, há uma verdade que não se pode desprezar: a desinformação impera.
Na maioria das entradas dos dicionários, a desinformação é denominada como “ato ou efeito de desinformar, de informar de forma errada ou enganadora”, “utilização das técnicas de informação para induzir em erro ou esconder certo(s) facto(s)” e “informação falsa, geralmente dada com o objetivo de confundir ou enganar”. Mas o que nos levará, muitas das vezes, a acreditar cegamente nos dados que nos são apresentados – aconteça isso via áudio de WhatsApp ou durante o segmento de um telejornal – sem proceder à sua verificação? Terá que ver somente com a nossa boa vontade e a credibilidade de certas instituições ou com algum fator a que não prestamos atenção?
Para que compreendamos este panorama, proponho a interligação entre as obras Pode o Público Querer? de Theodor Adorno (membro relevante do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, sede da aclamada Escola de Frankfurt, apelidada por muitos de “derradeiro suspiro da filosofia alemã”) e A comunicação mediada pela Internet de Joaquim Paulo Serra (professor catedrático da Universidade da Beira Interior e aprofunda temáticas como a Teoria da Comunicação).
O meu objetivo primordial é entender se o público realmente aplaude “com tanta força a ração que lhes é servida” ou se pode deixar de a aplaudir quando tiver outra “fonte de alimento” e existir o despertar da sua consciência. Em Pode o Público Querer?, texto publicado em 1974, Adorno estabelece um antagonismo entre duas perguntas: “Pode o público querer?” – relacionada com o campo espiritual, artístico e crítico – e “O público pode querer?”, que se prende com a área da produção material.
O autor anteriormente referido acaba por chegar a uma conclusão: “O público pode querer algo de correto (…) num sentido crítico, ou melhor, apostadas em não deixar que lhes seja servida idiotice em doses calculadas”. No entanto, até atingir essa tese, teve de refletir acerca de questões como a consciência unitária e individual (estar totalmente ciente dos acontecimentos ou factos), o pensamento crítico e a capacidade/incapacidade que todos nós temos de selecionar produtos televisivos. Adorno centrou-se numa questão essencial – Pode o público querer exercer algum tipo de influência sobre a televisão? –, no entanto, esta pode (e deve) ser adaptada aos restantes meios de comunicação e à forma como a audiência interage com os mesmos.
É certo que o público possui um vasto leque de possibilidades para agir subversivamente aos media, como escrever cartas a diretores de jornais, telefonar para determinados programas televisivos e participar em debates ou até mesmo participar ativamente em algumas emissões – contudo, esta iniciativa é limitada, na medida em que as emissões são difundidas para um número imensurável de espectadores (à data da produção do texto de Adorno porque, hoje em dia, existem técnicas de apuramento de audiências desde inquéritos a instrumentos mais precisos, como aparelhos que medem uma vez por dia que programas são vistos por cada agregado familiar ou até um controlo daquilo que é assistido em tempo real). Na atualidade, o grupo COVID19 dúvidas respondidas por profissionais de saúde, no Facebook, constitui um modelo positivo do modo como os cidadãos combatem as fake news (distribuição deliberada de desinformação ou boatos nos meios de informação ou nas redes sociais) e tentam produzir e partilhar entre si informação fidedigna.
Pela concentração administrativa do poder detido por quem produz a informação, o número de cartas dirigidas às empresas de rádio e televisão não se tornam estatisticamente representativas e são escritas por indivíduos que se indignam por hábito e que não tentam genuinamente alterar algo: não reúnem as condições para serem integrados nos pressure groups (coletivos de indivíduos que trabalham no sentido de influenciar aquilo que outras pessoas ou até mesmo o governo pensam acerca de um assunto em particular, com a finalidade de atingir uma meta previamente definida). Em tempo de pandemia, será que os cidadãos que enchem as caixas de comentários dos variados meios de informação com comentários insultuosos que atingem as práticas dos mesmos, não apontando quaisquer soluções viáveis ou sugerindo alterações, se tratam de impulsionadores de mudança?
Todavia, a seleção realizada pelos pressure groups que se apresenta ao restante público é tão específica e detalhada, que não representa a maioria das pessoas que assistem a x ou y programa televisivo (no caso do estudo mencionado, Adorno defende a inexistência de uma “consciência uniforme”). Deste modo, o autor pretende reconfigurar a indagação levantada inicialmente e conseguimos compreender que não se prende com o facto de o público poder querer, mas sim com o facto de ele dever ou não querer algo. Assim, passamos para outro patamar: que coisa deve o público querer? Só se pode responder a esta pergunta no campo social: “No domínio dos mass media (…) parece reinar algo como uma harmonia pré-estabelecida entre a oferta e a procura”.
Apesar das ferramentas de pesquisa do séc. XXI, é difícil verificar o que é a causa e o que é a consequência – por outras palavras, é árduo perceber em que medida os mass media se adequam ao estado de consciência e ao estado de inconsciência dos seus consumidores ou se, pelo contrário, são os próprios consumidores que já se adaptaram aos meios de comunicação de tal forma que se fixaram num produto sempre igual, exigindo precisamente apenas esse produto (“Entretanto, a questão de saber se hoje em dia as populações podem querer alguma coisa contém um aspeto cujo alcance ultrapassa em muito o domínio dos mass media. São muitos os fatores que levam a pensar que está em vias de atrofiamento a capacidade humana de querer algo mais ou algo de diferente para lá daquilo que, em todos os sentidos, se pode ter”).
Para evitar esta situação, seria necessário “interromper a identificação silenciosa com a omnipotência daquilo que está disponível”, isto é, que se desse a revigoração do “eu débil” (aquele que encontra o seu maior conforto em submeter-se; “a debilidade do eu, impeditiva do querer, não é um facto meramente psicológico: não é algo individual que se possa corrigir num plano individual, mas sim um produto da constituição social na totalidade e é reproduzido por ela”) mas “a compulsividade (interior e exterior) do consumo obriga a colocar a questão de saber se o público deve ou não deve querer”.
A meu ver, esta última citação de Adorno reflete bem a influência desmedida do consumo: “Subsiste, pois, o perigo de que o público, quando estimulado a manifestar a sua vontade, se limite a querer mais daquilo que lhe já é imposto” – pois mesmo quando temos oportunidade de realizar mutações neste processo de consumo industrial e capitalista, a inércia apodera-se de nós porque é mais fácil “comer” a ração (metáfora que Adorno utiliza para descrever a programação televisiva) do que refletir, tentar criar ou contribuir para a criação de conteúdos verídicos, completos e únicos.
Adorno refere que quem tiver dado pela diferença entre uma pura criação espiritual e um produto de sentimentalidade barata, está a admitir em simultâneo a possibilidade da diferenciação. Uma obra exprime alguma coisa e a outra insinua artificialmente. Uma retira as consequências dos seus pressupostos, enquanto que a outra desvia da consequência. Uma usa os meios com autonomia e a outra limita-se a imitar efeitos já comprovados. “O que não há, seguramente, é uma receita que nos diga como se transpõe essa possibilidade para a realidade da produção e da crítica”. Desta forma, a arte estaria a ser reduzida precisamente àquela previsibilidade (a da receita).
É possível escrever que, de forma geral, quanto mais as criações espirituais se adequarem às necessidades do ser humano (em particular às suas necessidades manifestas), tanto maior será a parte da sua qualidade própria que essas criações sacrificarão. O autor assume uma postura final de que o público, de facto, não pode querer algo de correto. Para poder, “seria preciso que fosse levado a podê-lo, por si mesmo e contra si mesmo, ao mesmo tempo”.
Ainda assim, o público consegue demonstrar que reflete acerca do conteúdo que lhe é veiculado para além daquilo que é “óbvio” e os meios de informação provam que estão atentos aos eventuais erros que cometem. No Jornal da Noite, da SIC, no sábado passado, foram transmitidas imagens de um tumulto ocorrido nas ruas de Londres há nove anos. O mote? Justificar aquilo que acontece na sociedade com a evolução negativa da pandemia de coronavírus. Porém, no dia seguinte, o jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho afirmou durante o mesmo segmento informativo: “Ontem, o Jornal da Noite errou. Não deveria ter acontecido, mas a SIC errou. Trabalhamos com a preocupação constante de verificar e validar as fontes de informação. Ontem essa rede apertada falhou. Não foi uma ação deliberada ou qualquer manipulação”.
Se evocarmos a distinção estabelecida por Rousseau entre volonté générale e volonté de tous (vontade geral e a vontade de todos os indivíduos particulares), o autor refere que, presentemente, “chegou-se a um ponto em que a vontade geral do público (neste caso, o seu interesse objetivo em criações espirituais nas quais todas as mediações sejam expressão da verdade própria de cada uma dessas criações) contradiz brutalmente aquilo que a própria vontade (involuntariamente) julga querer por si mesma e tudo aquilo que em geral lhe é complementarmente inculcado.
No fim do texto, Adorno finaliza: “Os milhões de homens que consomem a cultura de massas feita por medida para eles, cultura que afinal transforma os consumidores em massas, esses milhões não têm uma consciência que em si mesma seja unitária. Apercebem-se vagamente, de modo pré-consciente, por baixo de uma camada ideológica sem grande espessura, de que são constantemente enganados, enganados pelas capas de revistas, enganados pelo invólucro de celofane do último êxito discográfico”. Exemplo deste paradigma são os milhares de partilhas, nas redes sociais, que um kit de diagnóstico de coronavírus acumulou em poucas horas. Com a legenda “Boas notícias! Vacina contra o coronavírus pronta. Capaz de curar o paciente em três horas. Tiremos o chapéu aos cientistas dos EUA. Trump anunciou que a Roche Medical Company lançará a vacina no próximo domingo e milhões de doses estarão prontas!” levou a que os internautas tivessem esperança num progresso na investigação científica desta pandemia.
A problemática levantada – a pergunta que interliga os verbos dever (ordem, preceito, conveniência) e querer (desejo, vontade) com o “eu débil”, na medida em que um espectador/ouvinte/leitor pode desejar consumir outros conteúdos, ter outro tipo de cultura mediática, mas “todo o desvio é punido com o mal-estar daquele que se desvia, com um sentimento de isolamento social” – conecta-se com a posição de Guerra.
Numa primeira instância, importa realçar que se a desinformação impera, a tentativa de criar informação por parte de quem não está apto para tal também avança a passos largos. A emergência e o desenvolvimento do conceito do cidadão jornalista deram-se devido à perda da credibilidade dos órgãos de comunicação tradicional, ao desenvolvimento da Internet e à vontade que alguns cidadãos têm de participar ativamente na vida social. Como é que a comunicação social se adapta a estas mudanças e, acima de tudo, como é que encaramos as informações que são veiculadas por quem não têm formação ou experiência jornalística? Estes indivíduos não só podem complementar a esfera noticiosa como também alterá-la e promover a difusão de fake news. Se os próprios media têm dificuldade em seguir as regras deontológicas do jornalismo em determinadas situações, quem não tem noção da ética basilar deste ofício dificilmente as seguirá também.
Consequentemente, prestar atenção ao lugar que a Internet conquista como meio de comunicação é imperativo. Em A Comunicação Mediada Pela Internet, Guerra começa por evocar a posição do teórico Denis McQuail: “(…) a Internet parece ter vindo a tornar-se, nos últimos tempos, em mais um instrumento ao serviço das estratégias de concentração do capitalismo mediático, limitando ou mesmo anulando as suas potencialidades iluministas e libertadoras enquanto meio de comunicação” rematando de seguida com “(…) que tenhamos esperado tão pouco ou que esperemos demasiado da Internet como meio de comunicação deve-se, talvez, ao facto de a nossa ingenuidade em relação aos meios de comunicação ser, ainda, praticamente do tamanho da do Deus Toth [divindade do Antigo Egipto]” seguindo-se a exposição da crença de que a utopia ciberespacial subsiste porque a encaramos como sinónimo do surgimento de um “novo mundo”.
Ao longo do texto anteriormente referido, a Internet é considerada geradora de novos paradigmas comunicacionais. No entanto, para além de nela confluírem os outros meios (de forma digital) ou de promover a interatividade (entre os utilizadores e as notícias através, por exemplo, de organização hipertextual) também é um meio desintermediador. Ou seja, a mediação humana é substituída pela tecnológica: dispensa editores, mas igualmente transmissores e intérpretes da informação. E, deste modo, cria-se a falácia (derivada da idealidade da Internet) da perfeição da aldeia global (termo criado por Marshall McLuhan, teórico da comunicação): “um mundo de cidadãos interligados, constituindo uma e a mesma família humana, uma e a mesma consciência”.
Apesar disso, durante este período de quarentena, muitos cidadãos se têm unido e efetivamente fomentado uma consciência unitária através da utilização consciente e benéfica da Internet. A conta @qua_rentena, presente no Instagram, baseia-se na premissa “Tudo aquilo que merecemos e vamos fazer quando o mundo estiver melhor. Junta-te ao movimento #qua_rentena” e divulga publicações com os sonhos dos seus seguidores. “Abraçar os meus avós”, “Dançar até de manhã” ou “Comer sushi” são alguns dos desejos enviados pelos portugueses à administração da conta.
“Em tempo de guerra não se limpam armas” diz o provérbio, mas não nos esqueçamos de que em tempo de pandemia, devemos recorrer a recursos que, eventual e erradamente, não tivemos em conta em momentos menos confusos como o consumo cuidadoso de informação tal como a sua análise e verificação detalhadas. A realidade não se torna menos árdua, mas apreendemos uma imagem verdadeira da mesma e despistamos a supressão ou ocultação de informações, atribuímos a devida importância às mesmas (não menosprezando os acontecimentos) e criamos uma corrente (para lá das redes sociais) que possui uma importância imensurável: estar informado para informar o outro e evitar o crescimento da pandemia da desinformação.
Texto de Maria Moreira Rato