A angústia da decisão
Começamos o dia sem vagas nos Cuidados Intensivos. Talvez consigamos dar duas altas, mas temos dois doentes Covid a agravar no internamento e que precisam de Cuidados Intensivos. Temos dois doentes oncológicos que precisam de ser operados, são cirurgias prioritárias, mas não urgentes. Temos chamadas de outros hospitais para nos transferirem doentes que são nossos, e nós temos também doentes para transferir que são de outros hospitais, e a resposta dos dois lados é a mesma: “Não temos vagas”. Já não se consegue disfarçar a angústia há muito tempo. Queremos salvar todos. Regemos as nossas decisões por princípios éticos bem definidos. Ajuda ter documentos que nos orientam, mas estes não nos protegem de dilacerar o coração ao olhar os doentes nos olhos sem saber se os vamos poder tentar salvar.
Reunimos rapidamente os 3 ou 4 médicos mais experientes que estão nessa manhã. Temos um doente previamente saudável com 40 e tal anos que admitimos ter uma probabilidade de sobrevida inferior a 10% por complicações abdominais, e a correr bem vai precisar de largos meses de Cuidados Intensivos. A razão talvez nos diga para “desligar as máquinas” e que por acaso são muitas, mas é marido, é pai e é filho. Tentar salvá-lo é provavelmente em vão na nossa leitura clinica multidisciplinar, e poderia dar lugar a muitas vidas de diferentes patologias que não estamos a conseguir tratar. É angustiante esta decisão.
Queremos apressar as altas de doentes que há pouco saíram do ventilador por Covid e por insuficiência cardíaca, para podermos tratar mais doentes. Mas e se as altas forem precipitadas? E se eles voltarem a descompensar e os tivermos de readmitir? E se recebermos agora um politraumatizado grave na urgência que precisa de Cuidados Intensivos? A angústia e a ansiedade são galopantes, embora as tentemos não deixar transparecer. Eu já deixei pessoas morrer em situações multi-vítimas por não poder salvar todos, mas morreram em segundos ou minutos. É muito diferente tomar uma decisão sobre alguém que podíamos salvar e vai morrer em dias logos e sozinho nos hospitais. Eu olho à minha volta e sei que há muita gente medicamente ultra-qualificada e gente boa de coração que vai ter dificuldades a sobreviver a estas decisões. Que elas venham mais tarde do que cedo. Isto é destructivo.
Enquanto isto, na opinião pública joga-se um novo jogo: As olimpíadas da demagogia. Sim, enquanto Tóquio pondera adiar novamente os verdadeiros olímpicos, há muitas caras conhecidas, outras anónimas e até alguns médicos que precisam de um jogo para se entreterem. As Olimpíadas da Demagogia. “Porquê o Confinamento?”… “Os testes estão-nos a enganar!”… “Porque não abrem os restaurantes que tudo cumpriram?” … “O que é mais importante as eleições, a cultura ou ir à missa?!”… “Nas escolas ninguém se toca!” … Vale tudo, menos alternativas credíveis. Vale tudo, menos limitarem-se a falar do que sabem. Vale tudo, menos assumir a responsabilidade que os contactos entre as pessoas matam por Covid, e matam por danos colaterais na saúde de todas as patologias não-Covid.
Era o meu dia de ser o responsável máximo da gestão destas angústias de decisões de vidas e de mortes, quando toca o telefone a meio da tarde: “Doutor Gustavo, deu positivo…” Tinha acordado com alguns sintomas e mais por descargo de consciência decidi fazer o teste, com a certeza de quem quer muito acreditar que viria negativo. Mas a ciência não mente, e da angústia passei à tristeza de ter que baixar os braços, e passar a angústia das decisões difíceis do dia, a outra colega. Fico irritado como quem perdeu um jogo na secretaria, mas tenho que ficar fora de combate durante pelo menos 10 dias. O que me custa é sobrecarregar a minha equipa que está exausta e a fazer das tripas coração para salvar todos os que podem, sabendo que os comportamentos destes novos atletas olímpicos da demagogia, estão a fazer tudo para que morram mais e mais pessoas, que são pais, são mães e muitos também são filhos.
A todos que têm tantas alternativas na ponta da língua, desloquem-se aos hospitais, olhem os doentes nos olhos e digam-lhes a eles e aos seus familiares quais é que vão deixar morrer.
E depois expliquem aos médicos experientes que toda a vida trataram todo o tipo de doenças, como é que se sobrevive à angústia da decisão.