A antecâmara da reparação histórica, ou o perigo dos primeiros passos
Com a Assembleia da República dissolvida, a grande perda anunciada é a do mandato de Joacine Katar Moreira. Alvo fácil de ataques de ódio, Katar Moreira pode sair do Parlamento com a segurança de que cumpriu a promessa eleitoral: deu um enorme pontapé no estaminé.
E o estaminé respondeu de forma particularmente dura e extensa às propostas que estão na antecâmara da reparação histórica. Antecâmara porque, na verdade, as propostas que causaram maior celeuma (a proposta de alteração ao OE 2020 n.º 1114C, e as de resolução n.º 1442/XIV/2 e 1444/XIV/2) são moderadas. Joacine Katar Moreira não propôs, como deputada, em momento algum, a devolução de peças ou a retirada de símbolos coloniais (como o Padrão dos Descobrimentos). Não propôs, como é urgente e necessário, a criação de uma Comissão de Verdade e Reparação que fosse investigar a fundo o que aconteceu durante todo o período colonial português. Katar Moreira propôs, apenas, que houvesse lugar a contextualização, inventariação, e a uma melhoria dos manuais escolares.
O “perigo” destes primeiros passos não passou despercebido a quem os teme. Estas propostas, atacadas pelos anti-antirracistas e engavetadas pela esquerda parlamentar que se diz antirracista, a serem aprovadas, abririam caminho para o processo de reconhecimento e reparação. Se soubéssemos a proveniência das peças nos nossos acervos, os povos de origem, saqueados, poderiam reclamar pela devolução ou ações de reparação (veja-se o caso do manto Tupinambá em território francês). Se houvesse contexto histórico dos painéis do Salão Nobre da Assembleia da República, talvez se decidisse que, realmente, não tem mais sentido a sua existência.
Da mesma forma, se os censos em Portugal não fossem tão pobres na informação que recolhem (ao contrário dos censos brasileiros, o INE não pergunta os rendimentos dos agregados), e as propostas feitas pelo grupo de trabalho para as questões “étnico-raciais” nos Censos 2021 tivesse sido acolhida, os dados que teríamos em mãos impossibilitariam o negacionismo do racismo no nosso país, abririam alas para, como aconteceu no Brasil por liderança do movimento negro, a criação de quotas étnico-raciais.
Temo que na próxima legislatura não tenhamos representação parlamentar de quem entende todos os perigos dos primeiros passos, e que tenha a coragem de andar com a confiança com que Joacine Katar Moreira andou. Fica nas nossas mãos abrir as portas para essa antecâmara; uma vez lá dentro, o inevitável chega mais cedo.
Crónica de João Faria-Ferreira
Licenciado em Estudos Artísticos com menor em História da Arte, e pós-graduado em Estudos Editoriais. Trabalhador precário e ativista antirracista e anticapitalista.