A avicultura e a miragem distante de um bem-estar animal
Celebra-se hoje o Dia Mundial do Animal. E quando falamos em “Animal”, falamos de todos eles. Selvagens, domésticos, explorados pela indústria alimentar, utilizados em testes científicos… Celebra-se hoje o dia de todos eles e celebra-se por isso o dia de constatar o óbvio: nem todos os animais são iguais nem com direitos iguais, nem mesmo quando estes lhes seriam reconhecidos e devidos.
O Farm Animal Welfare Council, seguindo diretrizes ainda mais abrangentes da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, estabeleceu “As Cinco Liberdades”, que seriam devidas a todos os animais sencientes: Ausência de Fome e Sede; Livres de Dor, Ferimentos ou Doença; Ausência de Desconforto; Liberdade de Expressar Comportamento Natural; Ausência de Medo ou Sofrimento. Estas cinco liberdades deveriam então ser garantidas a todos os animais sencientes, ou seja, a todos “aqueles que têm sensações ou impressões, aqueles que são sensíveis”. E quem atribui esta senciência aos animais é a própria União Europeia e os seus respetivos Estados-membros, tanto no Tratado de Amesterdão (1997), como no mais recente Tratado de Lisboa (2007).
No entanto, este reconhecimento de senciência não tem sido suficiente, nem a nível europeu, nem especificamente em Portugal. Pelo menos não para todos os animais. Reconheceu-se a importância de plasmar a proteção de alguns deles no Código Civil, no Código Penal… Estabeleceram-se penas e coimas para quem maltratar… Deram-se passos certos, mas curtos. Curtos e muito limitados… Em Portugal, a Lei de Proteção aos Animais, em 1995, já proibia aquilo que dizia serem “todas as violências injustificadas contra animais”, onde “sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”. Seriam estes os primórdios de uma garantia de bem-estar animal no nosso país, inclusivamente na indústria agroalimentar. Mas 28 anos depois, continua praticamente tudo por fazer, nomeadamente na avicultura, o caso que vos trago hoje. A avicultura consiste na criação de aves para produção de alimentos, em especial, carne e ovos. Entre as espécies criadas na avicultura destacam-se o frango e a poedeira. Em menor escala, também são criadas aves como: perus, patos, gansos, codornas, avestruzes, e outras.
As cinco liberdades que vos falava mais acima são ainda uma completa miragem por cumprir na avicultura. As aves exploradas para produção de frango foram selecionadas geneticamente para crescer a uma velocidade extrema, o que faz com que o frango vendido atualmente cresça 4 a 6 vezes mais rapidamente do que o frango vendido na década de 50. Esta seleção genética permitiu que, em apenas 42 dias, uma ave bebé acabe a ter o corpo de uma ave adulta. Um sofrimento inimaginável para estas aves que não aguentam o seu próprio peso, nem o peso dos seus órgãos. Sofrem claro de problemas respiratórios e cardíacos diversos, muitas vezes levando até à quebra dos ossos das suas patas, tal é o peso do seu próprio corpo, não se conseguindo sequer deslocar aos dispensadores de água e comida que lhes são “garantidos”.
Também o comportamento natural destas aves acaba condicionado, visto que são produzidas dentro de pavilhões fechados e lotados. Não têm espaço, nem poleiros, nem terra para bicar ou raspar. Onde está o mínimo vislumbre de bem-estar? Quem o viu?
Também falando das aves exploradas para a produção de ovos, o caso não é melhor nem mais desenvolvido. Estas aves foram selecionadas para pôr a maior quantidade de ovos possível (atualmente conseguem um ovo a cada 24 horas). A postura de ovos retira muitos nutrientes do corpo da ave, inclusivamente uma grande quantidade de cálcio para a formação da casca do próprio ovo. Ficam doentes, com ossos muito frágeis e, cerca de 2 anos depois, são abatidas porque, a este ritmo, deixam de produzir bem mais cedo. Além de tudo isto, em Portugal, grande parte da produção de ovos é feita em gaiolas (uma promessa da União Europeia em proibi-lo até 2027 que parece continuar por caminhar nesse sentido), o que significa que cada galinha tem cerca de uma folha A4 de espaço disponível para viver. Não podem exibir os seus comportamentos naturais, nem sequer o seu normal abrir as asas. Por viverem em constante medo, desconforto e stress, os seus bicos são cortados quando têm apenas um dia de vida, para que não se biquem umas às outras dentro das gaiolas apertadas. Bem-estar?
Nesta mesma indústria, todos os anos, milhões de pintos recém-nascidos são triturados vivos, em Portugal e na grande maioria dos países da União Europeia. Porquê? Estes pintos machos não são capazes de pôr ovos, nem servem para a indústria da carne, porque não crescem à mesma velocidade. Assim que nascem, são atirados para um longo tapete rolante que os irá conduzir à queda num balde repleto de lâminas, onde serão triturados vivos. Os desperdícios gerados com os restos mortais serão posteriormente tratados para vender como ração para outros animais. Já existem métodos eficientes para evitar este abate indiscriminado e injustificado (ex. sexagem dos ovos), mas a indústria tem-se recusado a dar esse passo até que seja obrigada a fazê-lo por diretrizes oficiais.
O projeto Abrir de Asas quer mudar esta realidade na vida de milhões de seres sencientes explorados pela indústria avícola, criando consciencialização pública para estas questões de bem-estar animal e para as práticas cruéis a que estão submetidos. Além de sencientes, as galinhas são capazes seres com características individuais, cada uma com a sua personalidade, são empáticas e até capazes de desenvolver cálculos matemáticos (in Marino, 2017*)
Cabe-nos a nós, todos nós, mudarmos esta realidade e forçarmos a mudança num setor que teima em não querer ouvir as necessidades e exigências dos seus consumidores, que se conscientes destes factos começariam também a mudar os seus hábitos de consumo. Já vamos atrasados, mas que isso não seja justificação para o adiar mais.
Como podes ajudar? Começa por assinar a petição pelo fim da trituração dos pintos machos, para que possamos levar este tema à Assembleia da República e iniciarmos uma mudança no setor. Sabe como aqui: https://abrirdeasas.pt/peticao/ . Contamos contigo!
*Marino, L. Thinking chickens: a review of cognition, emotion, and behavior in the domestic chicken. Anim Cogn 20, 127–147 (2017). https://doi.org/10.1007/s10071-016-1064-4