A bula, essa arte esquecida
Pode ser dos dias, pode ser de mim, pode ser de ambos. A verdade é que, sem aviso nem remédio (e não uso esta palavra de forma casual, como ireis perceber) houve uma estranha actividade, praticada com gosto em tempos longínquos, que voltou a fazer sentido. Nada de extraordinário ou de extravagante e nem sequer ilegal. Trata-se apenas de uma daquelas pequenas excentricidades pessoais e inofensivas que todos carregamos na esperança de aligeirar o peso dos dias. No meu caso, eis a confissão: eu era um ávido leitor de bulas.
Não de bulas papais (que de resto também leio aqui e ali) mas a sua extensão semântica: a bula medicinal (e extensão porque como a sua homónima religiosa contém ordens, indicações e benefícios). A bula dos remédios é mais do que um simples manual de instruções para o utilizador. Pode ser um verdadeiro momento de literatura esquecida, que surpreende pela elaboração e muitas vezes pelo humor involuntário. Para que o leitor amigo não julgue que o cronista é um pobre chalupa que caminha sozinho pela rua enquanto recita baixinho as contraindicações da Aspirina digo em minha defesa que foram vários os humoristas que criaram números de stand up baseados na leitura destas pérolas; e assim de repente lembro-me pelo menos de uma crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre o assunto. Logo, e utilizando o jargão científico, “eles andam aí”.
Com o decorrer dos anos este passatempo da minha juvenília foi sendo relegado à sua dimensão puramente utilitária e informativa. Mas eis que o destino ou o que quiserem fez questão de me devolver o prazer que pensava já haver perdido. Explico: por questões pessoais tive de me informar sobre um medicamento nesta altura bastante comum no tratamento de crianças e adultos com Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção. Sabia, através de conversas com médicos e amigos, que era um medicamento com muitas contraindicações, pelo que deveria estar atento. Fui ler. De facto, a bula oferece várias páginas de perturbações associadas à má posologia ou a uma série de condições patológicas crónicas que são adversas a quem é receitado. Li então com a atenção necessária, mas, amigos, entre todos os conselhos e indicações havia um para o qual não estava preparado. Cito, no capítulo dedicado à sobredosagem: “Os sinais de sobredosagem podem incluir sentir-se doente, agitado, tremores (…) sensação de extrema felicidade (…)” Como? Desculpe? A “sensação de extrema felicidade” é prejudicial à saúde?
Quem escreveu esta bula, o doutor Schopenhauer? Eu próprio? Que maravilha, amigos. Apetecia-me falar com o espírito de Cioran, o Pirro dos pessimistas, só para ouvi-lo dizer que não pode haver excesso de uma coisa que nunca existirá.
Percebeis agora esta bulofilia? Eu também. Estas pepitas resgatam o minuto triste e funcionário da minha vida. Continuo a acreditar na bula mais importante alguma vez proclamada, da autoria do meu médico pessoal, o dr. Frank Sinatra: “Basically, I’m for anything that gets you through the night – be it prayer, tranquilizers or a bottle of Jack Daniels”. Mas irei continuar a procurar tesouros escondidos neste maravilhoso subgénero literário, tão incompreendido e que literalmente tão bem nos faz.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.