A capital e a província
Há algum tempo atrás, e insisto no atrás, para que fique clara a distância analógica, a província era um sítio. Não um local abstrato, mas um sítio no mapa. Pobre de recursos, os países inventaram a ideia de um desenvolvimento a duas velocidades. Assim, também foi no nosso. Numa localização geográfica, o cosmopolita, o urbano e o burguês produziam os negócios mais chorudos, os palácios mais vistosos, as grandes relações diplomáticas e as rotas comerciais que realmente interessavam. Ali, naquele local, colocávamos um ponto de exclamação e tínhamos a Capital! No resto do país, ficava a província, esse conjunto gigantesco de pequenos pontos que alimentavam a Capital do ponto de exclamação. Também com os seus negócios, mas de estilo mais humilde, com pouquíssimas relações externas, os seus palacetes menos vistosos e os caminhos estreitos para o contrabando e para as pequenas mercearias do dia-a-dia. Na província, havia tudo mas em pouca, muito pouca, quantidade e poucas, muito poucas, vezes.
Felizmente, os países desenvolveram-se e assim também foi com o nosso. Curiosamente, no nosso caso, esse impulso foi iniciado pelas últimas invasões estrangeiras. Os franceses obrigaram a Europa a entrar pelo nosso território e, pela primeira vez, a província recebia ideias e pessoas que lhes davam importância. Pela primeira vez, a história e a visão de um mundo para lá dos montes e rios tornou-se possível. Não foi imediato o processo, e como aqui tudo é sempre mais lento, só recentemente e com ajuda da Europa do século vinte, se iniciou a abolição das províncias. Ao estado, já não interessava manter o país a várias velocidades e foram construídas estradas a ligar todos os pontos. Parece pouco, mas de facto o que muda a sociedade é o movimento das pessoas de um lado para o outro. Seja por guerra ou por comércio, um grande número de pessoas em movimento consegue provocar alterações culturais radicais.
Assim, chegamos à nossa palavra de eleição, a cultura, que misturada com província se transforma na cultura provincial, que todos queremos erradicar. A cultura quer-se local, regional, nacional, universal, mas nunca provincial ao serviço de uma qualquer Capital, humana, política ou cultural. Ser provinciano é estar ao serviço de um sítio mais poderoso e isso não é, nem democrático, nem liberal. É inaceitável e inadmissível que haja eventos culturais ou ideais artísticos baseados no local onde serão apresentados. Se uma ideia é pertinente, é-o em todo o território, e não apenas aqui ou ali.
Conto-vos assim da nossa ida à Província apresentar um espectáculo de teatro. Foi há algum tempo atrás. Era um espectáculo que contava a história de amor impossível entre dois homens, no interior de Portugal do século dezanove. Parece ridiculamente inócua na sua proposta, no nosso país há já algum tempo que os direitos LGBT têm-se desenvolvido na sua exposição pública, sem grande contestação. Estamos então com o assunto resolvido? Pensei que sim, e pensei: será que não?! Este pensamento levou-me a escrever A Morte de Abel Veríssimo e a desejar muito que pudesse ser apresentada simbolicamente em locais similares aos que retrata. Não é em nenhum sítio específico, mas é nessa província que já não existe, imaginei eu. Mas ela ainda existe, não geograficamente, mas mental e espiritualmente. Ao chegarmos ao local, onde fomos recebidos calorosamente e estranhamente sem qualquer pergunta, acabámos por descobrir que havia algum receio na reacção da população, dizem que conservadora de costumes e preocupada com o que podemos pensar dela. O espectáculo tinha algumas cenas visuais que envolviam os típicos beijos e envolvimento entre amantes, coisa com preocupação estética mas sem nenhuma preocupação ou censura política. Fizemos o espectáculo de sala cheia e no final aplaudidos. Ninguém contestava ou protestava. Os elogios chegaram rapidamente e já no convívio posterior as mensagens sobre o afecto com que tinham seguido aquela história de amor, tornou evidente o que ainda não o era, a província felizmente já não existia. A Capital! é aqui, é ali, é em todo o lado, e só alguns de nós ainda insistem em ser províncias ambulantes, terras que não aceitam a diferença. É, sobretudo, para essas províncias, que temos de continuar a trabalhar!