A cidade, esta cidade
O restaurante de bairro onde por vezes me albergo é igual a tantos outros: simples, pequeno, ecrã gigante com a emissão que varia entre noticiários e jogos de futebol. É o proprietário que cozinha (sempre sem dispensar o seu boné) enquanto a mulher serve as poucas mesas que agora podem ser servidas. A comida é barata, oito pratos por dia e pouco dados a aventuras ou exotismos.
Mas não é a excelência culinária que ali me traz nem sequer o facto de ficar a dez passos de onde moro. É porque ali há gente que reconheço serem da minha cidade. Na mesa em frente à minha sentam-se sempre os mesmos clientes, prontos a discutir animadamente tudo e alguma coisa. Usam expressões como “o problema é o COVIDIS [sic]” ou interjeições de origem misteriosa como “Eu sei mais do que a Amália!”. É gente modesta, moradora de um bairro popular que me devolve sem saber a cidade que estou em risco de perder.
Entendam-me, amigos: a cidade de que vos falo e a sua autenticidade não tem nada a ver com aspectos mais folclóricos ou a noção falaciosa (e perigosa) de que o “povo” é que é verdade. De resto, este conceito zoológico do que é o “povo” remete-me logo para os versos de Cesariny: “Vamos ver o povo. /Que lindo é. Vamos ver o povo./ Dá cá o pé. // Vamos ver o povo. / Hop-lá! Vamos ver o povo. / Já está.”
Não: a minha cidade ainda vive em todo o lado, escondida mas resistente. Eu cresci num bairro de classe média, fiz amigos e cúmplices numa zona também burguesa da cidade. Isso torna-nos menos verdadeiros, menos genuínos ? Não. A minha cidade é feita do engraxador à beata emperiquitada que leva para a missa casaco de pele em Agosto.
Porque – e agora sentavam-se aqui por um momento, amigos – porque a cidade é feita de gente, o que quer dizer que carrega com todas as imperfeições do mundo. Mas são essas imperfeições que muitas vezes formam a raiz do que nós somos, do lugar onde vivemos.
Agora não. Talvez já tenha estado pior, antes do “Covidis”, como insiste o meu vizinho. Só que uma pandemia é só isso: uma praga, um perigo. Não é uma força bíblica e moralizadora, destinada a tornar-nos pessoas melhores ou a fazermos actos de contrição. É uma doença que mata e que nos obriga a proteger e quero lá saber se por causa disso os brontossauros voltaram às ruas. Sei que há gente que morre e gente que se esfalfa para que isso não aconteça.
Sei que, pior do que a minha cidade estar de máscara, é que a querem mascarada. Cores garridas nas ruas, conceitos balofos e multiusos como o de “mobilidade” e uma lógica mercantilista feroz tende a destruir o coração simples de qualquer cidade, que toma várias formas ao longo dos séculos. E esse coração chama-se comunidade e não tem fronteiras, apenas um sentimento de pertença que pode ser sentido por qualquer um.
Não, não se trata de turismo ou da discussão da gentrificação. Para mim, neste cenário, tudo se tornou mais simples: ou ficamos com coração ou optamos por um aglomerado urbano. Sou lisboeta, sei o que quero e o que quero que não me tirem. Há muito que me apaixonei por esta senhora, umas vezes marquesa outras puta mas sempre com o melhor vestido puído nas fímbrias do rio que a namora tanto como eu.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.