A consagração do professor Mário Cotrim
Tenho sempre alguma dificuldade em tirar conclusões demasiado precipitadas sobre os objetos artísticos com que me deparo. Consigo, com relativa facilidade, perceber se gosto ou não de uma música, de um álbum, de um filme, de uma peça ou de um quadro. Explicar as razões pelas quais sinto isso já é uma tarefa que me exige alguma maturação.
Em Junho de 2022, pouco antes de ser apresentado no Sumol Summer Fest, escrevi umas palavras sobre o novo álbum do Profjam. Tinham passado praticamente dois meses desde que começámos a ouvir o Música de Intervenção Divina e hoje, 10 meses depois, continuo a sentir o mesmo: é um disco imaculado de 25 músicas, de digestão lenta, com princípio, meio e fim e com um objetivo claro — o de repensar o que somos, o que fazemos e naquilo que acreditamos durante a nossa passagem pelo mundo.
Faz hoje uma semana que Mário Cotrim entrou na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa e nos apresentou, de fio a pavio, as 25 faixas que compõem o MDID. Tive a oportunidade e felicidade de assistir às duas datas, com lotação esgotada, e gostaria de reforçar o seguinte: há, sem sombra de dúvida, um amadurecimento de alguém que, vindo do pó, do credo e do belo, concluiu que travará sempre muitos duelos mas que prefere tentar resolver primeiro os internos.
Tal como o álbum, a perfomance, criada em conjunto por Mário Cotrim, a dupla de produtores 2LO e o quarteto de cordas orientado pelo maestro Tiago Matos, foi carregada de tons e arranjos sombrios, densos e com uma energia quase apocalíptica. Sentimos de forma bastante explícita as batalhas constantes entre as profundezas e a elevação de alguém que tem lutado contra muitos demónios físicos, mas também metafísicos. Não foi um espetáculo simples, meigo ou carinhoso. Foi uma hora e meia de palestra profundamente introspetiva, duplos sentidos e muitas camadas. A Aula Magna foi um tiro certeiro, que não haja qualquer dúvida.
O que mais admiro no rapper de Telheiras é a honestidade e facilidade artísticas com que se coloca constantemente em lugares desconfortáveis e pouco habituais, ainda para mais sendo originário de uma cultura musical, no mínimo, conservadora. O que se viu na semana passada, corrijam-me se estiver a mentir, nunca tinha sido feito em Portugal. Houve teatro, dança, spoken word, Profjam a tocar guitarra elétrica, piano acompanhado de freestyle dos street bikers Wheelie GADS e, na segunda data, até uma invasão de palco para abrir o show.
Não havendo, para já, mais datas de apresentação deste espetáculo, restam-nos as memórias de quem lá esteve. As fotografias e vídeos que têm circulado não fazem jus, na minha opinião, à dimensão imersiva da aula à qual assistimos na Reitoria da Universidade de Lisboa.
Parece-me que há poucos públicos tão fiéis, a roçar o culto de personalidade, como aquele que acompanha Profjam há praticamente uma década. Numa era de imediatismo e onde se consegue aceder a praticamente tudo instantaneamente, sinto que o que aconteceu nos dias 16 e 17 de Fevereiro de 2024 é um dos segredos mais bem guardados e preciosos da cultura hip hop em Portugal. Resta-nos esperar pelo próximo capítulo da carreira do artista mais disruptivo e provocador da sua geração.