A contemporaneidade

por Martinho Lucas Pires,    27 Novembro, 2024
A contemporaneidade

Quando abro a aplicação aparecem-me invariavelmente, no meio de tantas outras coisas, boas e más, os versos de David Berman e as imagens de Twin Peaks. Dizem que agora é tempo dos anos noventa voltarem, e se for assim, talvez seja bom. O fim do Reaganismo e do Cavaquismo, com projetos de esquerda que eram tão ou mais de direita, como Clinton e Blair, a entrarem no mundo. Ai, que coisa boa seria pensar na paz e no pão, na saúde e na habitação como plataformas básicas de projeto político! Mas precisamos da economia, e não abdicamos da liberdade, e fazemos bem, porque por um lado não devíamos ser parvos e por outro, não devíamos abandonar o sonho, e acima de tudo, o romance.

Num dos discos lançados este ano, os Fontaines D.C. cantam que “talvez o romance seja um lugar”. A tradução é livre, tal como o desejo, e ouvi esta canção com os ares de Coura ainda no espírito, mesmo que já tivesse deixado o Minho litoral para trás, na gaveta de mais um verão. Não conhecia a obra dos Fontaines em profundidade, pelo que decidi ver qual era o seu jogo. Até ao terceiro disco a subida é impressionante, em termos de técnica e talento. Chegados ao quarto, estão como nós, a questionar-se o que é isto, este mundo moderno em que não se sente nada (ou se sente em demasia). Marotos, devolvem-nos a pergunta, com algum estilo e bonomia: e agora?

Agora é novembro e o mundo continuou a fazer-se com as lutas que comprou. A Alemanha já percebeu que o seu modelo económico está condenado, mas isso não quer dizer que vamos ficar sem regras orçamentais ou a começar a falar mais a uma só voz na União, a favor das coisas boas e contra as coisas más. Pelo contrário, temo. Este é um tempo que não desejávamos, de conflito e de mudança, mas é nesses momentos que temos de forçar a alternativa, de algum modo. Num dos vários livros que li este ano, um político com um bom jogo de cintura e antecipação (o seu nome: Salvor Hardin) apercebe-se de que só conseguirá salvar o seu planeta (nome: Terminus, que é como quem diz, a morada final) se for fiel a uma promessa – e agir pelo que sente.

Perante duas situações limite, Hardin decide forçar a alternativa, num ato de fé. Chamam a esta fé, no livro, uma ciência, mas uma ciência especial, uma mistura entre história e psicologia. É impressionante como com esta fórmula simples o seu autor, Isaac Asimov, explica de forma simples a ficção científica, e as suas gloriosas capacidades de explicar não o mundo, mas o seu sentimento.

Vivemos num tempo que oscila entre sentimentos de desesperança e aborrecimento. Gostava de voltar a Berman, mas sem tradução: “Sin and gravity / Drag me down to sleep / To dream of trains acress the sea.” Gostava de voltar ao mundo de David Lynch e de Mark Frost, àquela aldeia no Norte onde tudo é o que é, e ainda mais um bocado; onde cabanas e casas mundanas se misturam com sonhos e pesadelos sedutores. Gostava de sentir, contra toda esta contemporaneidade decrépita, contra este tempo de transformação, o romance que me carrega. Que após este ano, o mundo aprenda a reconstruir uma nova fé em si próprio, que seja pelo mundo e pelos outros, e não contra ele e por nós, apenas.

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