A crise na cultura
Parece-me que a cultura literária (especialmente a nível nacional) caminha por uma crise. Esta parte de diversos factores, no meu ponto de vista: a falta de originalidade na criação, onde as mais recentes publicações envergam todas pelas veredas do amor, sentimentalismo, broken hearted story tellers com a mesma estrutura, etc.; a maré cheia de publicações desenfreadas de “promessas” que pagaram para ver os seus escritos com selos editoriais e vendidos digitalmente nas livrarias (com alguma sorte também os vendem nas livrarias locais da terra do autor); a lacuna das influências que se dissolve numa leitura rápida dos tops de venda para a própria compreensão de como escrever/vender; enfim, há uma panóplia de factores que apontam para a crise cultural e literária em Portugal e acredito que isto possa ter um significado social e político por detrás.
Achei importante perceber um pouco melhor a questão da crise na cultura através de um ensaio de Hannah Arendt: “A Crise na Cultura (O seu Significado Social e Político)” (na obra “Entre o Passado e o Futuro”, ed. Relógio d’Água, Fevereiro 2006) onde a autora disseca o tema da cultura e o modo como este está inserido na sociedade, como é consumido, criado, etc.; parto daqui pois acredito que numa questão tão ténue e importante como esta, para o início de século que vivemos (onde tudo se parece repetir) a questão cultural é fulcral especialmente pelo teor político que carrega – e daí surge a relação ética/estética erguendo-se questões de liberdades literárias face a possíveis totalitarismos.
Na altura do ensaio o termo “cultura de massas” era relativamente recente, um assunto preocupante para os intelectuais. Já na atualidade a cultura de massas é algo com que já nos familiarizamos desde então e que não parece ser assim tão preocupante para os intelectuais (pelo menos até que esta se principia no envolvimento político) – isto é, com a crescente onda de populismo torna-se inevitável que algum deste consumo passe pela demagogia, especialmente com a facilidade de difusão mediática através das redes sociais – mas de onde surge este termo “cultura de massas”? Deriva de “sociedade de massas”, e a partir daqui se pressupõe, logicamente que a cultura de massas é uma forma de cultura da sociedade de massas.
Hannah Arendt adverte para uma diferença importante entre sociedade (nos seus primeiros estádios) e sociedade de massas, e esta diz respeito à situação do indivíduo: “Enquanto a sociedade acolhia apenas certas camadas sociais, as probabilidades de o indivíduo resistir às suas pressões eram bastante altas; essas probabilidades baseavam-se na presença, no seio da população, de outros estratos sociais, igualmente não pertencentes à sociedade, onde o indivíduo se podia refugiar, e um dos motivos porque muitas vezes o indivíduo se ligava a grupos revolucionários era por descobrir nesses elementos que a sociedade afugentava do seu seio traços humanitários que se haviam já extinguido na sociedade. (…) E uma boa parte do desespero dos indivíduos numa sociedade de massas deve-se ao facto de essas vias de escape estarem agora fechadas, pois a sociedade absorveu todas as camadas da população.” (“A Crise na Cultura”, 2006) – parece então que agora o artista não tem um lugar-refúgio na sociedade devido a este “camuflado” das camadas sociais onde parece ter sido tudo colocado dentro do mesmo saco – como a enorme massa que é a sociedade de massas – “Não é, porém, o conflito entre o indivíduo e a sociedade o que aqui nos ocupa, embora tenha certa importância assinalar que o artista parece ser o último indivíduo que resta numa sociedade de massas.”
Quando os produtores de tais obras de arte se viraram contra a sociedade e as suas obras de arte partiram dessa oposição, permanecendo nela (oposição), demonstra que o “antagonismo entre cultura e sociedade é real e anterior à sociedade de massas”. Tendo em conta que, como a autora nos explica ao longo deste ensaio, o artista é o “autêntico produtor” dos objectos da cultura, o que é que acontece à cultura quando as diferentes condições sociais se dissolvem numa sociedade de massas?
Se as coisas tivessem ficado pelo antagonismo, pela brecha entre o produtor e a sociedade, teria sido mais simples. Isto é, se a principal acusação do artista fosse a “falta de cultura e interesse” da sociedade. Contudo, surgiu o “filistinismo” (“palavra que designava a mentalidade de alguém que apreciava tudo em termos de utilidade imediata e de valores materiais, tornando-se indiferente a objectos e afazeres inúteis tais como os que relevam da cultura e da arte”), e a partir daqui desenvolve-se que a sociedade começa a manifestar interesse pelos chamados “valores culturais” monopolizando-os para os próprios fins como o status e posição social. Ora, na luta pela posição social, a cultura desempenha um papel importantíssimo, como “fuga da realidade”, dando uma “fisionomia ao filisteu cultivado e instruído”. Isto torna-se uma ameaça ao produtor, ao artista, que corre o perigo de ser expulso da realidade para uma “esfera de conversas refinadas” onde tudo aquilo que o artista faz perderia o devido significado.
Parece-nos (tanto a mim como a Hannah Arendt) que o único critério “não social e autêntico” para avaliar a cultura na sua matéria (livros, quadros, estátuas, edifícios, música, etc.) é a sua relativa permanência (“e eventual imortalidade”) porque é aquilo que perdura que se considera objecto cultural. Ora, o problema que aqui se submete é que se estes objectos culturais se tornam antes objectos de “refinamento social e individual” como etiquetas de estatuto, estas perdem as suas qualidades mais elementares. “As grandes obras de arte são tão maltratadas quando se pretende pô-las ao serviço da educação ou do aperfeiçoamento de si mesmo como quando se as põe ao serviço de qualquer outro fim; observar um quadro como fito de aprender mais sobre um dado período histórico pode ser tão útil e tão legítimo como servir-se desse mesmo quadro para tapar um buraco na parede. Em ambos os casos, a obra de arte está a ser usada para fins secundários.” (“A Crise na Cultura”, 2006)
Para Hannah Arendt o problema do uso da cultura por parte do filisteu estava no facto de que este a “usava” para se auto-aperfeiçoar ignorando o que haveria para além disso nas obras que usa – “(…) ignorando o facto de que Shakespeare ou Platão podiam ter coisas mais importantes para lhe dizer do que o modo como se educar; o problema estava em ele escapar-se para uma região de “poesia pura” de maneira a manter a realidade afastada da sua vida”.
Partindo agora para a atual sociedade de massas, parece que a principal diferença entre a antiga sociedade e a sociedade de massas é que aquela desejava a cultura, valorizava e desvalorizava os objectos culturais como simples mercadorias e moedas sociais em função dos próprios fins egoístas, mas não “consumia”. Pelo contrário, a sociedade de massas não deseja cultura mas entretenimento. Diga-se já de passagem que os artigos oferecidos pela indústria são para consumo pela sociedade como qualquer outro bem de consumo, pelo menos até há pouco tempo atrás com a polarização.
Numa sociedade de massas, ou melhor, naquela sociedade em que habitamos, o entretenimento serve para “passar o tempo”, como lazer. O entretenimento torna-se um local em nenhures onde nos libertamos das preocupações e atividades exigidas pela vida no seu sentido lato. Parece-me que com o surgimento de tanto tempo livre na sociedade se abriu uma brecha para a necessidade do entretenimento e, atenção, este é absolutamente necessário “como o trabalho ou o sono, faz irrevogavelmente parte do processo biológico da vida”. O que o entretenimento nos oferece não são objectos culturais, são antes mercadorias destinadas ao consumo rápido, para uso até que se gastem, como qualquer outro bem de consumo. Estes bens são avaliados pela novidade e pela “frescura” que trazem ao mercado e face à “imortalidade” dos objectos culturais Arendt aponta estes “bens de consumo” como uma “ameaça para o mundo da cultura”.
Adverte-se que a ameaça não está na sociedade de massas, nem na própria indústria do entretenimento (que se limita a satisfazer necessidades), porque ao não desejar a cultura, a sociedade de massas é ainda menos perigosa para a cultura que os filisteus. (Ainda que os artistas e intelectuais se queixem constantemente disto, em parte deve-se ao que a autora descreve como “incapacidade dos mesmos em penetrarem a ruidosa futilidade do entretenimento de massas”.) Não podemos censurar esta indústria enorme que é a do entretenimento, assim como não podemos censurar o padeiro por fabricar pão, porque todos nós precisamos de divertimentos e “é só por pura hipocrisia ou snobismo social é que nos ocorre negar que podemos encontrar diversão e entretenimento nas mesmas coisas que divertem e entretêm a maioria dos nossos congéneres”. (“A Crise da Cultura, 2006)
É certo que a cultura é menos ameaçada por aqueles que preenchem as horas vagas com diversões do que aqueles que as enchem com “furtuitas buigigangas culturais” para subirem na escada social. Contudo, não é assim tão simples, isto porque a indústria do entretenimento vê-se confrontada com apetites gigantes e já que os seus conteúdos desaparecem num ápice, têm de procurar constantemente novas matérias para a criação de mais entretenimento e por essas mesma razão veem-se obrigados a mexer e escavar entre o passado e o presente, no campo da cultura, procurando algo que lhes preencha as medidas, modificando-as de acordo com aquilo que o mercado procura. Algo que se assemelha a um pássaro mãe que mastiga a comida antes de dar aos seus filhos, moldando o conteúdo e tornando-o “divertido” para que possa facilmente ser consumido.
E é exatamente a partir daqui que a cultura de massas surge – quando a sociedade de massas recorre e se apropria de objectos culturais para a “criação” dos seus próprios bens de consumo. O exemplo mais claro e que Hannah Arendt recorre é o do cinema, que se “aproveita” de grandes obras literárias para adaptar para o grande ecrã. Isto afecta a natureza do objecto cultural e modifica-o. Não se trata de uma extensão da cultura às massas, mas antes de uma “reducção” para fácil consumo.
A meu ver é daqui, da cultura de massas, que (re)surge um filisteu do século XXI, a partir da cultura de massas, com interesses descoordenados e sem coerência no seu sistema “intelectual” onde o consumo parte de filmes, séries, documentários ou leituras rápidas de leads e crónicas/comentários a todo o tipo de conteúdo – um consumo rápido da cultura sem a devida argumentação, meditação ou reflexão. O que se “desliga” do texto de Hannah Arendt para a nossa atualidade é o facto de que todos podem não só consumir a cultura de massas como fazer parte dela. Podem opinar sem conhecimento de causa, desatar a encher caixas de comentários nas redes sociais dos demais canais informativos com opiniões formatadas em prol do tal consumo rápido que acharam ser cultura – por exemplo, a clássica opinião de que o nazismo é um movimento de esquerda porque vem do “nacional-socialismo” e o socialismo é um movimento de esquerda, ou a atribuição do título de “fascista” como se o termo englobasse todas as vertentes de extrema-direita.
Após abrir as primeiras páginas da revista Electra nº 9 (Verão 2020) e ler dois textos abordando a questão “Deve uma obra literária ou artística ver-se limitada por razões ética e políticas?” – questão suscitada pela atribuição prémio nobel da literatura a Peter Handke que defendeu publicamente o presidente sérvio Slobodan Milosevic – nestes dois textos, por João Barrento e Michel Surya, respetivamente, em que se debateu então a separação (ou não separação) da estética da ética: “A ética e a estética são inseparáveis” (Ludwig Wittgenstein, na epígrafe que abre o ensaio de João Barrento), pareceu-me interessante descrever os factores que me parecem influenciar tanto a ética como a estética das obras publicadas (pelo menos daquelas que contribuem para uma crise na cultura).
Quando passamos para o texto de Michel Surya “Liberdade ilimitada” (Electra nº 9, Verão 2020) deparamo-nos com o factor da liberdade aliado à cultura. Na verdade a liberdade literária (ou cultural) pode ser assustadora para uma cultura de massas onde o consumo breve reina, pois um objecto cultural almeja à imortalidade. “Não há grandes livros que não tenham começado por escandalizar, nem grandes autores que não tenham sido criticados (e até perseguidos e condenados…)” (“Liberdade ilimitada”)
A liberdade para a criação cultural implica que a obra tenha um cariz para além do consumo. A cultura precisa pois de se libertar da liberdade imposta pela moralidade, do “politicamente correto”, e ir para além da cultura de massas, do simples consumo, desgaste e posterior deterioramento. A cultura de massas parece estar pressa a uma “ética” que venda e que se encaixe na maioria das pessoas e isso pode ser limitador para muitos artistas.
Numa das passagens no artigo de Michel Surya, cita-se Sade “Não basta que a literatura possa dizer tudo, ela deve fazê-lo, mesmo que isso faça tremer os homens.” – neste aspecto há uma crise cultural que travou a criação no momento em que a cultura de “hipermercado” se sobrepôs à cultura literária – um autor já não é um autor, é antes uma pessoa que escreveu livros, pagou pela sua publicação, vendeu pela sua imagem, pelo número de seguidores nas suas redes sociais, pelos contactos, por todas as razões e mais uma, exepto pelo livro.
Deixou de haver “risco” para que tudo se torne bestseller ou “revelações” literárias aos dezasseis anos, como jovens Rimbauds que caem das árvores aos molhos – ainda que essa fruta seja apenas mais uma peça de cultura de massas.
O nosso século apresenta uma capacidade fenomenal para o aparecimento de estrelas na ribalta com tremenda facilidade, como se todos tivessem que ascender aos céus. Todos almejam ao eco do nome, mas poucos se entregam à liberdade cultural que “devem”. A moralidade de massa obriga à criação “deficiente” e condena tantos à cultura do cancelamento. Por vezes pergunto-me como reagiriam se uma obra como “Os 120 dias de Sodoma” ou “História do Olho” tivessem sido publicadas em 2020.
“No nascimento de cada homem, este começo inicial é reafirmado, pois cada nascimento representa o aparecimento de algo novo num mundo que já existia antes e continuará a existir depois dele. O homem pode começar porque ele é um começo; ser homem e ser livre são uma e mesma coisa.” (Hannah Arendt, 2006)
Crónica de Márcio Luís Lima
O Márcio Luís Lima é de Viana do Castelo e da colheita de ’98. Licenciado em Filosofia (atual mestrando) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Um apaixonado por boa literatura, de preferência no recanto mais sossegado da varanda ou numa esplanada a meio gás.