A crónica do Boticário

por Pedro Saavedra,    19 Maio, 2021
A crónica do Boticário

Vivemos no tempo da peste. O tempo em que colocamos o nosso mundo em causa. O tempo em que tudo pode piorar muito antes de melhorar alguma coisa. O de onde vem, quem a trouxe e quem nos irá salvar? São as etapas que iremos viver e nessa história teremos de escolher se somos o Boticário, Aparícia, a mulher dele, ou o Mouro que o salva.

“No princípio era o som e o som era matéria. Todos nascemos dele e a ele voltaremos na entrada da próxima vida.” Foram as palavras que trouxeram, de volta à vida, o Boticário. Ao lado do seu leito, um homem escurecido. Pela falta de luz ou pela falta de limpeza, nunca lhe passou pela cabeça que o negro era-o por excesso e não por falta. O homem com excesso de pigmento estava ali a pedido da sua mulher. Havia na cidade um surto de peste e não havia padres nem físicos disponíveis para o acudir.

O Boticário estava acamado com episódios de sobriedade esporádicos. Ora vivo ora morto outra vez, sabia por experiência que a diferença entre o mundo dos sonhos e o da realidade do seu gabinete era muito ténue. Já tinha acompanhado muitos moribundos e imaginava que a sua hora estava para breve Não existe só o mundo físico, há mais qualquer coisa depois disto tudo, não te preocupes. Sussurrava-lhe o negro. Mouro, há sinais de vida? Perguntava Aparícia, lá fora, por entre as frinchas das tábuas que tinham pregado à pressa na janela do gabinete. Paciência, respondia-lhe de volta. Percebendo que a mulher se prostrava do lado de fora da barreira protectora, o Mouro molhou o pano branco que trazia ao pescoço na bacia de água do mar que Aparícia, contrariada, tinha transportado desde a praia.

Tinha sido lá também o seu encontro, junto às barcas que os estrangeiros tinham aportadas, há doze dias, ao largo da cidade. Na praia, foi o único que parou, enquanto os seus companheiros corriam para o bote que tinham trazido às escondidas, para se abastecerem de preciosos víveres. As palavras estrangeiras, ela não conseguia entender, mas a forma como o Mouro lhe segurou no queixo e lhe sorriu com um Bom dia, na sua própria língua, deixou-a tranquila. Aparícia explicou-lhe, como pôde, que a aflição do estado do marido, acamado há dias com um simples resfriado, provocado por um altruísmo seu que muito lhe criticava, emparedado e finestrado pelo pânico da populaça ao inesperado surto de peste na cidade, a tinha trazido àquela praia. Desesperada, precisava de alguém que entrasse lá dentro no escuro da casa e verificasse o estado de saúde do seu pobre companheiro de relação, de há mais de dez anos, para lhe saber o destino. Minha querida, o escuro é meu amigo e protege-me sempre da mais profunda das escuridões. Não tenhas medo, leva-me a ele. Talvez por falta de melhor opção, ou por sentir uma absoluta caridade na interacção com o Mouro, assim fez e não se arrependeria. O Boticário continuava vivo, lá dentro. Ela, melhor, lá fora. E o Mouro, esse, parecia mesmo saber o que estava a fazer.

Quem somos nós nesta história e que peste é esta que assola a cidade da nossa história? A peste da história é a mesma da peste do nosso tempo, a peste da nescidade. Perigosamente contagiosa, esta doença apresentou-se várias vezes como a principal causa de morte da humanidade. Desde o tempo em que começámos a ter a capacidade motora de olhar para cima, em que a evolução para o bipedismo nos ofereceu pescoço flexível acima dos trinta graus dos restantes mamíferos, que olhar para cima e fazer perguntas se tornou o acto mais humano da humanidade, mas também, e tão humano como esse, nasceu o néscio. O ser humano com a capacidade de dizer os maiores disparates em voz alta.

Olhamos para cima há cerca de dois milhões de anos, mas só há cerca de trezentos que começámos a olhar para cima sem medo que o céu nos caia em cima. O peso do céu, o inalcançável topo dos montes e montanhas sagradas, deu-nos sempre a sensação de que o que nos rodeia não é mais importante e isso impeliu a humanidade na direcção dos estudos dos céus, mas limitou-nos a vista sobre o que realmente nos sustenta: o chão. Somos seres aéreos e temos de ser chamados à terra de vez em quando. Olhar para o mundo que nos rodeia permite ter uma visão periférica que reconheça que não somos o elemento principal, mas apenas um dos muitos elementos que compõe a natureza. Nisso, reside a sabedoria do Mouro, o estrangeiro, a nova ideia que, de pergunta em pergunta, nos salva dos disparates pensados em voz alta.

Mais do que saber coisas, temos de ir, ao longo da vida, aprendendo a associar as coisas que sabemos. Saber muito não tem qualquer importância, se não aprendermos o processo de associação entre a informação de que dispomos. A aprendizagem por ilhas, em que um aluno aprende decorando informação como datas, nomes de figuras históricas, equações ou locais no mapa, não transmite sabedoria. A sabedoria é assim como uma receita farmacêutica em que mesmo Aparícia, sem saber o que fazer, sabe confiar numa nova e inesperada solução que pode revelar um resultado completamente inesperado.

Sim, nós podemos ser como o Boticário. A sabedoria tem de ser emulsionada para as nossas maleitas. Uma sabedoria mal emulsionada, transmite uma visão pouco ampla do mundo que nos rodeia e é perigosa porque permite que outros liguem os pontos por nós, criando o desenho mais hediondo do monstro, e o monstro é a peste néscia que consome todos os que lá fora esperam que a nossa morte aconteça, sozinhos na escuridão e que com isso o problema desapareça. Não desaparecerá.


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