A crueldade da vida em ‘Nobody Knows’ de Hirokazu Koreeda
Os primeiros minutos de “Nobody Knows” de Hirokazu Koreeda estão repletos de ternura, conforto e até um certo tom que não chega a ser cómico, mas que é bastante leve, apesar de ser retratado de forma indirecta. Existe uma clara boa disposição entre a mãe e os seus filhos, quase como um sentimento de amizade que todos respeitam e isso dá-nos uma noção de conforto.
Akira é o mais velho de quatro irmãos. Juntamente com a sua mãe mudam-se para uma nova casa, mas sem que os vizinhos saibam que existem mais três irmãos além de Akira. Isto porque nenhum deles vai à escola e cada um tem um pai diferente. Um certo dia a mãe desaparece, deixando apenas uma nota e a ideia de que irá regressar em breve. Sabemos através de um diálogo entre as crianças que esta não era a primeira vez que a mãe as abandonava, embora desta vez seja “definitiva.”
A forma como a mãe da família abandona os seus filhos com o objectivo de criar uma nova família com um outro homem é arrepiante. Se do lado da mãe sentimos no início do filme a total ausência de responsabilidade e o caos das suas decisões, do lado das crianças sentimos a frieza que é necessária para encarar esta situação: De que modo é que reagirias se aos 12 anos a tua mãe te abandonasse a ti e aos teus irmãos mais novos? É esta a questão que Koreeda nos coloca na cabeça e que explora na segunda metade do filme, mostrando não só um conjunto fortíssimo de jovens actores, com enorme maturidade (os mais novos tiveram poucas indicações do realizador de forma a representarem de forma natural) como uma excelente planificação e desenvolvimento do seu argumento.
Koreeda explora neste filme várias situações reais da sociedade japonesa. Em primeiro lugar a vergonha de uma mãe solteira que tem quatro filhos de quatro pais diferentes. Em segundo lugar a ausência de uma educação formal e contínua na vida de cada uma das crianças, completamente alienadas da vida exterior à sua casa (excepto Akira). Estes “fantasmas” sociais moldam o comportamento de cada um dos personagens, obrigando-os a tomar decisões que irão impactar as suas vidas de forma fatal e irremediável.
O realizador japonês brinca com os conceitos sociais como se ele próprio os tivesse criado, fruto talvez de uma grande maturidade e capacidade em absorver vícios culturais. Ele é o Deus das suas histórias e nelas nem sempre tudo corre bem, antes pelo contrário.
Ao longo da narrativa, sempre com um tom leviano em várias situações, Koreeda vai-nos apertando o coração sem que consigamos dar por isso. Pequenos momentos como o crescimento de Akira e a sua relação com outras crianças, ou a amizade que constrói com Saki são apresentados de forma quase natural, embora por detrás estejam vários processos naturais de construção de uma sociedade demasiado rígida, demasiado dura.
Koreeda mostra-nos que embora o Japão seja diferente de todo o mundo, também tem problemas comuns a qualquer outra cultura. Uma criança vai sentir dificuldades em construir uma amizade em qualquer parte do planeta, talvez não desta forma, mas sim de outras. O que o realizador nos diz é que esta é a forma japonesa.
Akira é o motor de todo o filme e é através dele que vemos e sentimos tudo. A sua relação paternal com os irmãos mais novos é ternurenta e tão natural que parece real. A forma como lida com as economias da família, a gestão de alimentos e até mesmo de sentimentos é fruto não só de um grande trabalho do jovem actor, mas também de um fortíssimo argumento e de um realizador que filma exactamente aquilo que planeou.
Nem tudo neste filme é tragédia e embora o final seja de uma crueldade incomparável (o filme é baseado num caso verídico, embora seja apenas influenciado por ele, não é exactamente uma recriação do acontecimento), pelo meio assistimos a alguns momentos positivos, como os trabalhadores do supermercado a que Akira vai todos os dias que o ajudam em várias ocasiões, a personagem Saki que ajuda as quatro crianças até ao fim. Koreeda filma a vida tal qual ela é e esse é o seu maior trunfo.
Do ponto de vista técnico estamos perante talvez um dos filmes menos conseguidos do realizador a nível de realização, com um tom mais documental (naturalmente propositado) mas que ao mesmo tempo torna alguns momentos demasiado amadores. Alguns cortes são também algo forçados, embora a fotografia esteja a um nível bastante superior, com planos interiores a fazer lembrar Ozu. É no argumento e interpretações que o filme ganha todos os seus créditos, com uma frieza demasiado dura para se aguentar num dia em que a vida não nos tenha corrido bem.
O cinema de Koreeda é como a sociedade japonesa, por vezes distanciado de emoções e sentimentos directos, mas com uma profundidade intensa dos mesmos nas nossas atitudes, decisões e pensamentos, sempre guiados pela rigidez, ordem e sistematização comportamental. Essa negação da exteriorização emocional “fácil” torna-nos a nós, espectadores, passiveis da crueldade manipuladora do realizador e da sua capacidade em dar e tirar, tal como Ozu fazia exemplarmente nos seus filmes.