A crueza natural de ‘Raw’
O cinema francês tem criado nos últimos anos algumas pérolas distintas das suas icónicas vagas romântica e cómica. Filmes como “Holy Motors”, “La science des rêves”, “Caché” ou “Elle” têm revigorado o cinema francês e potenciado magnificas interpretações. Apesar da produção ser dividida com a Bélgica, grande parte da equipa técnica e elenco são de origem francesa.
“Raw” não é diferente desta nova vaga francesa, explorando um tema cada vez mais vivo na sociedade actual: será o consumo de carne realmente necessário para o nosso bem estar? Podemos optar de forma saudável pelo caminho vegetariano? Embora sejam questões sem grande profundidade, a forma como a realizadora explora essas mesmas questões torna o filme mais denso.
Garance Marillier é claramente a estrela deste thriller de horror que por vezes nos dá uns vislumbres do cinema de Dario Argento, muito graças à incrível banda sonora e às cores vermelha, rosa e azul que tingem o ecrã nos momentos mais aflitivos. A premissa é simples e a narrativa flui de forma bastante natural, oferecendo-nos alguns detalhes técnicos de grande qualidade, como a fotografia, graças à mestria do belga Ruben Impens, director de fotografia do filme.
Justine é uma jovem rapariga como todas as outras, um pouco mais introvertida e com a característica de não comer carne. Julia Ducournau, a realizadora, encaminha-nos ao longo da sua encruzilhada narrativa, com diversos detalhes apaixonantes e outros misteriosos que nos levarão sempre a querer saber mais. Se por um lado a história se inicia e desenrola de forma bastante natural, por outro temos diversos momentos em que questionamos determinadas acções, como por exemplo a sequência de abertura e o facto da mãe de Justine ficar tão aflitiva quando ela possivelmente teria trincado carne. Todas estas acções são conduzidas na perfeição pela realizador que aqui demonstra uma total capacidade para gerir a sua história e navegar os espectadores pelo seu mundo.
Justine, recém admitida na Faculdade de Veterinária onde a sua irmã também estuda, vê-se confrontada com vários problemas de todos os jovens comuns: sexo, adaptação social, notas e problemas interiores. Ao longo do filme a sua vontade natural e chocante de comer carne crua vai tomando um tom completamente diferente do esperado, acalmando com o personagem, em vez de o chocar.
Conforme a narrativa vai evoluindo e os personagens se vão desenvolvendo, a relação de Justine com a irmã Alexia revela-se, várias vezes, perturbadora, oscilando entre grandes momentos de tensão e outros de falsa descontracção. A partir dos primeiros 45 minutos o filme vai mudando de tom e aumentando o acelerar de cortes, planos, tonalidades e o ambiente musical. Destaque exemplar para a forma como a banda sonora de Jim Williams (responsável também pelo genial “A Field in England”) conduz o espectador para um ambiente mais intenso do ponto de vista visual e simbólico.
Do ponto de vista técnico Julia Ducournau fez bem o trabalho de casa. Estudou os clássicos e aponta vários planos de génio, com uma montagem por vezes frenética e diálogos muito bem construídos. A interpretação de Garance Marillier é tão natural que por vezes nos deixa a temer se esta loucura será contagiante.
Ao longo o filme a personagem de Justine vai evoluindo de tal forma que chegamos a questionar a sua estabilidade. Adrien e Alexia brilham enquanto personagens, mas muito graças a Justine, o motor de toda esta crueldade. A sua personagem passa de um momento de pureza para outro de puro choque e terror, culminando no grande debate que este filme nos coloca: Seremos nós capazes de controlar uma necessidade tão inata? Ou devemos deixar-nos conduzir pelos instintos primários que conduzem os animais? Este debate vai bem para lá da questão se devemos comer ou não carne, se uma vida vegetariana é saudável ou a melhor opção. “Raw” mascara-se neste simples enredo, mas na verdade debate questões quase intrínsecas à própria evolução da humanidade. É através dessas metáforas, exploradas através da personagem de Justine, que a realizadora cria uma obra profunda, com toques do cinema de horror do génio Argento (fazendo lembrar “Suspiria” e “Phenomena”).
Do ponto de vista negativo há pouco a referir, mas fica o sentimento de que falta explorar alguns conceitos e, possivelmente, a narrativa de um ponto de vista mais filosófica. Embora a realizadora construa de forma ímpar este castelo de terror, por outro falta um final mais emblemático e alguma justificação para o fecho da personagem de Alexia.
Enquanto para uns “Raw” será apenas um filme com imagens chocantes, violência extrema e uma simples história de loucura e fantasia, para outros será um debate moral constante repleto de questões que existem desde o inicio dos tempos.