A cultura do medo

por Pedro Saavedra,    2 Fevereiro, 2022
A cultura do medo
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Todos temos medo. Medo de alguma coisa. Há os que têm medos biológicos, medos ambientais ou medos artificiais, mas todos naturalizam os seus medos com a mesma impressão de ameaça. Aquilo, faz-me sentir ameaçado, perturba-me e mantém-se ali como que à espera que a ameaça se transforme no ataque. Vou ser atacado a qualquer momento e o medo previne-me, avisa-me, prepara-me. É mais claro assim? Não se sinta diferente por isso. É normal ter medo. Eu, na sua posição, teria medo. Talvez não gritasse tanto como você gritou, mas é normal que sua dor precisasse de ser expelida do seu corpo, entendo por isso que tenha gritado, é normal. Nas artes marciais, na luta corpo a corpo, é também assim. Até no desporto é também assim.

Sempre senti que o mundo era injusto. Há demasiada concorrência, luta por território, defesa intransigente daquilo que penso pensar. Muitos de nós nunca terão a oportunidade de se realizar devidamente, seremos sempre frutos de uma insatisfação latente, de uma espera pelos melhores dias que virão, por uma vontade que não se realizará nunca. Nunca nos realizamos realmente, apenas guardamos memória dos momentos espumantes em que a sensação parecia lá estar. Quando o meu filho nasceu foi um desses momentos. Não pude assistir ao parto, estava escalado para trabalhar nesse dia. Ainda pedi licença mas era claro, e eu concordei, que aquele trabalho tinha de ser meu. A notícia apanhou-me a meio da operação; Doutor, o seu filho acaba de nascer! A sério? Pode segurar aqui? Abandonei a mesa de operações sem sequer me preocupar com a posição do paciente e corri para o telefone. Do outro lado, a voz do médico apaziguou-me e decidi-me por um cigarro junto à Porta 3.

Não sei bem porque lhe conto isto, mas como me disse que tinha medo estou a tentar ser seu amigo, por isso acho importante que também saiba algo sobre mim, antes de me contar tudo sobre si. Sei pouco sobre si, gostava de saber mais. Seria bom para a nossa relação. Por estranho que pareça, passámos de estranhos da rua a amigos íntimos e expostos às nossas duas naturezas. Sim, não julgue que o facto de ter nas minhas mãos os seus órgãos internos também não me expõe. Se o seu lado interno me é mais visível a mim, o meu interior também aqui está à sua frente. Tudo o que aprendi, antes deste momento. Tudo o que vivi, para aqui chegar, está a passar de mim para si. Quero mantê-lo vivo como se a minha vida também dependesse disso.

E depende. O que lhe acontecer a si ficará comigo para sempre, quero que saiba isso. Sabe, eu acredito que, mesmo anestesiado, o paciente consegue sempre ouvir-me. Tento sempre que a minha voz apazigue, que tenha um efeito calmante durante a intervenção. Mesmo sendo só local, imagino que, e apesar da máscara, se pudesse, me responderia. Mas pronto, prefere fazer uma pausa ou continuamos? Façamos uma pausa, então.

Aqui, é-nos revelado o cenário e as personagens que a voz nos foi apresentando. Torna-se claro que a nossa imaginação estava certa: não estamos nem num hospital, nem a voz é a de um médico a operar um paciente.

bém dependesse disso.

E depende. O que lhe acontecer a si ficará comigo para sempre, quero que saiba isso. Sabe, eu acredito que, mesmo anestesiado, o paciente consegue sempre ouvir-me. Tento sempre que a minha voz apazigue, que tenha um efeito calmante durante a intervenção. Mesmo sendo só local, imagino que, e apesar da máscara, se pudesse, me responderia. Mas pronto, prefere fazer uma pausa ou continuamos? Façamos uma pausa, então.

Aqui, é-nos revelado o cenário e as personagens que a voz nos foi apresentado. Torna-se claro que a nossa imaginação estava certa, não estamos nem num hospital nem a voz é de um médico a operar um paciente.

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