A decência dos decentes. A lista do jornal Expresso
Hoje, ao acordar, recebi um link do Expresso. Dei de caras com o título “Lutar contra o racismo é mais simples do que parece. Basta a firmeza da decência: 39 manifestos de todo o país contra a intimidação.” Mais abaixo, no corpo do artigo, lê-se: “Como pode então a decência vencer a intimidação? Foi esta a pergunta que o Expresso fez a várias personalidades de diversas áreas de atividade e intervenção em Portugal.” Até aqui, tudo bem. Depois fiz contas. A lista dos convidados pelo Expresso é composta maioritariamente por pessoas brancas: 25 homens brancos; 10 mulheres brancas; 2 homens negros; 2 mulheres negras. A partir daqui, julgo já não estar tudo tão bem.
Antes de avançar para o que me proponho dizer sobre o assunto, esclareço que nada tenho contra a maioria das figuras selecionadas. Sei que algumas delas, aliás, investem parte do seu tempo e do seu trabalho no combate e na denúncia da desigualdade social e racial e dos avanços do fascismo. Dizer ainda que o Expresso é livre de convidar quem quiser, que fique claro. E por fim, de forma a fechar este dossiê de ressalvas, longe de mim interferir na forma como o jornal escolhe fazer o seu trabalho.
No entanto, e se me permitem a sobranceria, a própria pergunta que serve de mote para o artigo “Como pode então a decência vencer a intimidação?” pressupõe uma ideia errada. A de que devemos ser decentes no combate que estamos a travar. O que é ser decente quando se trata de racismo e fascismo? O que é ser decente quando o que está em causa são ameaças a deputadas e ativistas antirracistas e antifascistas e respetivos familiares? A ideia de que temos de ser decentes no combate contra o racismo é algo que me ensinaram em casa — “não levantes ondas”, “não respondas” — disse-me tantas vezes a minha mãe, com medo e com a certeza que se fizesse o que ela dizia tudo acabaria por correr pelo melhor. E o Expresso recorre a isso porque, tal como a minha mãe, julga que a decência pode ser uma das armas contra a intimidação. Não é. Aliás, a pergunta é de tal forma limitadora e inconsequente que resulta em respostas como “A espécie humana evoluiu não por intimidação, mas por inteligência e decência.” (Pedro Simas, cientista).
Temos assistido nos últimos tempos em Portugal ao crescimento da extrema-direita que encontra num deputado eleito a legitimação do seu ódio às minorias, e a quem ousa fazer-lhe frente. Um deputado que chegou a sugerir a uma colega, igualmente eleita, que voltasse para a sua terra. A indiferença com que alguns lidaram com o caso é reveladora de que ainda temos um longo caminho a percorrer. Um caminho que não se faz com a decência — seja lá o que isso for, neste contexto. Porque já não se trata de ser ou não decente. Pensar que é com a decência que se combate este clima de intimidação que está em crescendo no país é, permitam-me novamente a sobranceria, pensar errado. Aliás, o Expresso não está só nesta ideia da decência no combate à intimidação; o próprio Presidente da República pede “sensatez na reação ao racismo”. Diga-me, caro leitor, como pode alguém reagir com sensatez quando vive ameaçado apenas pelo tom de pele. E quando aqueles a quem cabe defender-nos, ou negam a ameaça, ou pedem que se reaja com sensatez. Diga-me, se conseguir.
Não deixa ainda de ser curioso, numa altura em que muito se fala de “racismo institucional” e de “racismo sistémico” — palavrões muitas vezes ditos sem que se perceba o significado — acabemos por encontrar neste artigo do Expresso um exemplo perfeito disso. A ausência de pessoas não brancas em lugares de representação. Enquanto a pessoa branca é convidada a refletir sobre o outro, ao negro cabe apenas um papel: o de homem invisível.
Mas atenção: não defendo que apenas as pessoas não brancas podem ou devem falar de racismo. Vivendo nós numa sociedade onde o racismo e o machismo estão de tal forma presentes e enraizados, a luta deve ser travada por todos. Mas se a causa é de todos, não tentar, numa ocasião como esta e quando se fala tanto em representatividade, ouvir de forma proporcional quem sofre racismo, é altamente questionável. Como o é ter quem está numa posição dominante a falar sobre este assunto colocando-se num lugar de pretensa universalidade sem sequer refletir sobre o sítio de onde fala.
Já para não dizer — e talvez seja apenas um pormenor — que todos os convidados negros, à exceção de Luísa Semedo, professora universitária, são entertainers, enquanto do outro lado há desde juristas a humoristas, passando por jogadores de futebol, ativistas, jornalistas, dramaturgos, cineastas. Dizer às pessoas, ainda que sem intenção e de forma subliminar, que os negros são estes e os brancos são aqueles também é contribuir para uma narrativa. Cabe ao Expresso perceber que o simbolismo também conta. Uma lista com apenas 4 negros, num universo de 39 pessoas, vale o que vale e, para mim, vale pouco. E se temos de ser sensatos no combate ao racismo, como prescreve o Presidente da República, o Expresso foi pouco sensato na elaboração desta lista.
Por fim, não posso deixar de agradecer ao Expresso, por finalmente elucidar-me em relação à forma eficaz de combater o racismo. Porque, afinal de contas, lutar contra o racismo é mais simples do que parece. “Basta a firmeza da decência.”
Crónica de Carlos Manuel Pereira
Carlos Manuel Pereira, até ver. Licenciado em Ciência Política no ISCTE, mestrado em “discussões sobre o racismo” no Twitter. Humorista, pelo menos eles dizem que tenho piada e eu acredito neles. Tenho uma rubrica de humor da RDP África – NA CORDA BAMBA. E amigo dos seus amigos porque ser amigo dos seus inimigos é parvo.
Esta crónica foi editada às 19:55 para corrigir o número dos convidados pelo Expresso.